Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...] Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida." Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
Umas poucas vezes na História da Música Popular Brasileira ocorrem parcerias "siamesas", dessas que constituem uma obra toda, de modo que não conseguimos separar no imaginário os membros que acabam configurando um verdadeiro "ente". É nesse nível de compatibilidade de gênios que enquadro a dupla formada por João Bosco e Aldir Blanc, autores de canções memoráveis e figuras protagonistas do cenário cultural e político brasileiro, especialmente durante a década de 1970. Ao ver hoje algumas postagens no admirável Arquivos Vinis(quem quiser conhecer, recomendo essa página fantástica no Facebook) não resisti a furtar desse dia dedicado às correções de trabalhos alguns minutos para gravar aqui minha admiração pelos dois, aos quais gostaria de ter devotado mais atenção na minha tese, mas fica aí a sugestão para os navegantes que venham a singrar as "águas da Guanabara" da pesquisa sobre a MPB, eles merecem muito estudos de maior profundidade.
LP "Linha de Passe". João Bosco. RCA Victor. 1979. Arte de Mello Menezes.
Linha de Passe(João Bosco/ Paulo Emílio/ Aldir Blanc), com João Bosco e Yamandu Costa
Chegamos à 5a. parte da lista das 30 selecionadas e analisadas por Pablo Castro, numa iniciativa que concretizou uma ideia antiga sobre a qual já havíamos conversado há um bom tempo. Foi em boa hora! A repercussão tem sido fantástica, tanto no facebook quanto aqui no blog. As visitas, os comentários e a participação de tantos amigos são fundamentais, e nos motivam muito a continuar e pensar em novos desdobramentos dessa história. Gostaria de agradecer a todos, e um agradecimento extra aos que estão acompanhando o blog, que brevemente irá passar por mudanças que espero irão torná-lo um espaço ainda mais interessante. Inclusive estão convidados a sugerir temas para as próximas porque com certeza outras listas como essa virão. Valeu! Luiz H. Garcia
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Terminei minha Lista das 30 mais do Clube [completa, aqui] com a
nítida sensação de que se eu fizesse outra, com outras 30, ela não
ficaria atrás em termos de qualidade. Tal o vulto de qualidade e
quantidade que a produção cancional do Clube deixará para as próximas
gerações, enriquecendo o já absurdo panteão da Música Brasileira. Ao
começar a lista, despretensiosamente numa dessas madrugadas, não
imaginava que ela daria tanta repercussão positiva.
Me descabelei aqui para tentar não deixar de fora músicas como Fé
Cega, Faca Amolada, Uma Canção, Luz e Mistério, Ponta de Areia, Léo,
Paula e Bebeto, Fairy Tale Friend, Cravo e Canela, Nascente, E Daí,
Bodas, Sentinela, Dona Olympia, Outubro, Três Pontas, Choveu, O Medo de
amar é o Medo de ser Livre, Viagem das Mãos e tantas outras que
mereceriam estar na lista das melhores de qualquer compositor. Tentei
equilibrar , dentro de tão apertado limite, os compositores, tanto
músicos quanto letristas, as fases, os discos importantes, as temáticas e
os estilos, e ainda jogar nova luz a canções pouco lembradas, como Tema
dos Deuses, Rio Doce, Tiro Cruzado , Caso Você Queira Saber, e outras. Devo agradecer, de imediato, meu parceiro Luiz Henrique Assis Garcia , que se empolgou com a idéia e replicou minhas modestas resenhas em seu excelente blog Massa Crítica Música Popular. Além dele, a excepcional força que o grande intelectual Idelber Avelar Guarani Kaiowá me deu, chamando a atenção de vários de seus amigos no fb, gente da mais alta qualidade. Além de meus amigos músicos , como Makely Kaiowá , Humberto Junqueira, Alieksey Vianna, Avelar Junior, Kristoff Silva, Flávio Henrique, Péricles Garcia, o grande Daniel Dan Fernandes
que também montou uma playlist com as músicas, e inúmeros amigos e
entusiastas da obra do Clube, inclusive alguns participantes, como o
Márcio Borges, o Murilo Antunes, Telo e Solange Borges, que comentaram
aqui, aprovando minha iniciativa. Fico realmente muito feliz em poder
contribuir para a apreciação dessa obra monumental na Música Brasileira.
Beijos a todos !
Pablo Castro
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A vigésima- quinta da nossa lista é Feira
Moderna, de Beto Guedes, Lô Borges e Fernando Brant. Feira Moderna é um
marco em vários sentidos. No contexto do Clube, foi a primeiro flerte
mais sério com o roque, com seu riff de baixo e intermezzo
cromático tocados com aquela afirmação extravasada do gênero britânico.
Defendida primeiramente pela banda Som Imaginário em um festival [essa versão, aqui], com a
voz estridente e nervosa do saudoso Zé Rodrix e as metáforas típicas do
Clube, aqui saltando à vista o temerário sorriso, a velha chaga, o
medo, e a Feira Moderna aqui não pode ser outra coisa que não a TV.
Independência ou morte é uma alusão clara da aliança da televisão (particularmente a Globo) com o regime militar, a paz na terra amém
poderia ter sido grafada como a pax ... interessante notar como na
primeira versão "o meu coração é velho" e na segunda , gravada pelo
compositor Beto Guedes seis anos mais tarde, passou a ter o verso mais
positivo: "meu coração é novo" [essa versão, aqui]. Dentro dessa intereseção roqueira do
Clube com o Rock, poderíamos ter incluído a ainda mais tipicamente
roqueira Você Fica Melhor Assim ( Lô e Tavinho Moura), ou coisas como
Fairy Tale Friend (Cadê) (Milton e Ronaldo), Idolatrada (Milton e
Brant), Lumiar (Beto e Ronaldo), mas acho que Feira Moderna é mais
exemplar desse movimento : uma estrofe (única ) de 7 (!?) compassos ( em
versos de 3+3 +1 ), e um longo refrão de duas metades de 11 (!!??)
compassos remetem às idiossincrasias dos Beatles, repletos desses
tamanhos irregulares de partes da forma, e os ganchos instrumentais são
inspirados indubitavelmente nesse ethos da banda de rock . Daí ter sido a
música de trabalho do Som Imaginário, em sua primeira e mais célebre
formação, faz todo o sentido. Harmonicamente, a música gira em torno de
Lá maior, repousando em seu relativo Fá sustenido menor durante o longo
estribilho, e voltando ao tom por intermédio da subdominante , na famosa
cadência plagal, típica do roque. É um marco na relação da música
brasileira com a inundação invasiva anglo-saxônica, sem os hilários
arremedos histriônicos dos Mutantes nem com a piegas reverência
envergonhada da Jovem Guarda.
Feira Moderna Tua cor é o que eles olham , velha chaga Teu sorriso é o que eles temem, medo, medo Feira Moderna, um convite sensual oh telefonista , se a distância já morreu meu coração é velho meu coração é morto e eu nem li o jornal Nesta caverna o convite é sempre igual oh telefonista, se a distância já morreu independência ou morte descansa em berço forte a paz na terra, amém.
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Vento de Maio, de Telo e Márcio Borges, logrou
ser a vigésima-sexta da Lista que tá cada vez mais difícil de fechar
... essa balada esquineira em 6/8 provou mais uma vez a rara estirpe da
família Borges, em que o então menino Telo Borges fez
uma trilha pra teatro e seu irmão mais velho Marcinho musicou um trecho
que acabou sendo esse standard do Clube da Esquina. Uma primeira frase
postula o início confiante em Sol maior : "Vento de raio, rainha de maio,
estrela cadente ..." então chega de repente o "fim da viagem", e ficamos
vagueando de forma ambígua nos campos das tonalidades, ainda perto de
Sol, mas com acordes distantes como Ebm7, quando já não dava mais pra
voltar atrás. E depois o épico B da música, em Sol menor, desnuda o
subtexto de uma das raras músicas de amor romântico do Clube da Esquina,
com simbolismos oníricos e referências veladas, e algumas imagens
bastante inspiradas. A melodia repousa em sétimas maiores e nonas, os
intervalos mais surrealistas, em frases de arpeggio, e poucos graus
conjuntos, e Elis a interpretou magistralmente [para ouvir, aqui], de forma insuperável,
mas o tipo de arranjo que mais encarna o espírito do clube é mesmo a
versão de Lô Borges*. Um estupendo trabalho em família! *Também canta Solange Borges [nota do editor]
Vento de Maio Vento de Maio rainha de raio estrela cadente Chegou de repente o fim da viagem Agora já não dá mais pra voltar atrás Rainha de maio valeu o teu pique Apenas para chover no meu piquenique Assim meu sapato coberto de barro Apenas pra não parar nem voltar atrás Chegou de repente o fim da viagem Agora já não dá mais... Vento de raio rainha de Maio estrela cadente Chegou de repente o fim da viagem Agora já não dá mais pra voltar atrás Rainha de maio valeu o teu pique Apenas para chover no meu piquenique Assim meu sapato coberto de barro Apenas pra não parar nem voltar atrás Rainha de maio valeu o teu pique Apenas para chover... Nisso eu escuto no rádio do carro a nossa canção Sol girassol e meus olhos abertos pra outra emoção E quase que eu me esqueci que o tempo não pára Nem vai esperar Vento de Maio rainha dos raios de sol Vá no teu pique estrela cadente até nunca mais Não te maltrates nem tentes voltar o que não tem mais vez Nem lembro teu nome nem sei Estrela qualquer lá no fundo do mar Vento de Maio rainha dos raios de sol Chegou de repente o fim da viagem Agora já não dá mais pra voltar atrás Rainha de maio valeu o teu pique Apenas para chover no meu piquenique Assim meu sapato coberto de barro Apenas pra não parar nem voltar atrás Rainha de Maio valeu o teu pique Apenas para chover no meu piquenique...
--##-- A vigésima -sétima calhou de ser Canção do
Novo Mundo (não confundir com Canção da América), de Beto Guedes e
Ronaldo Bastos. Agoniei-me aqui com qual balada de primeiro nível que eu
incluiria dos dois: Amor de Índio, Lumiar, Sol de Primavera,
O Sal da Terra foram as que mais me botaram em dúvida . Decidi por
Canção do Novo Mundo porque é uma resposta ao terrível desaparecimento
forçado de John Lennon, e é quase como se a Canção recuperasse o
sentido num evento tão torpe. Numa época de abertura política, as letras
do Clube tendiam a metáforas mais positivas, ao contrário dos
simbolismos mais negros dos anos setenta, mas Canção do Novo Mundo bota o
dedo na ferida , sem datar ou reduzir a letra ao acontecimento
revoltante que a inspirou. Também pelo fato de a composição fazer uso de
elementos rítmicos bastante notáveis, particularmente o uso de
compassos diferentes intercalados para dar naturalidade à divisão
melódica. Temos 2 compassos de 5/4 e um de 6/4 entrecortados pelo 4/4
preponderante na música. Esse recurso super heterodoxo foi usado também
na magnífica Ponta de Areia, de Milton e Brant, com resultado idêntico:
a melodia tem preponderância sobre a regularidade rítmica da canção, o
que confere ainda mais distintividade à composição. A forma é clássica,
com 4 estrofes (uma instrumental) estrofes e três Bs (um
instrumental), que modula de Dó maior para seu relativo paralelo Mi
bemol, um arranjo à la George Martin e um solo de Toninho à la George
Harrison, e a tessitura alta de melodia consistente: o mesmo perfil no
tom sobe uma quarta para o grande finale. Beto toca bateria na versão
original do disco Contos da Lua Vaga (1981), que, infelizmente, não
consegui achar em versão completa no youtube. Felizmente Milton
Nascimento gravou essa música em um disco ao vivo, com orquestra, em 1983 [para ver e ouvir, aqui].
Beto e Ronaldo conseguiram aqui esse equilíbrio entre elementos
distintivos e clássicos que faz dessa canção o protótipo perfeito de uma
canção de Lennon & McCartney que nenhum deles deixaria de assinar
se a tivessem feito.
Quem sonhou Só vale se já sonhou demais Vertente de muitas gerações Gravado em nosso corações Um nome se escreve fundo As canções em nossa memória Vão ficar Profundas raízes vão crescer A luz das pessoas Me faz crer E eu sinto que vamos juntos Oh! Nem o tempo amigo Nem a força bruta Pode um sonho apagar Quem perdeu o trem da história por querer Saiu do juízo sem saber Foi mais um covarde a se esconder Diante de um novo mundo Quem souber dizer a exata explicação Me diz como pode acontecer Um simples canalha mata um rei Em menos de um segundo Oh! Minha estrela amiga Porque você não fez a bala parar Oh! Nem o tempo amigo Nem a força bruta Pode um sonho apagar Quem perdeu o trem da história por querer Saiu do juízo sem saber Foi mais um covarde a se esconder Diante de um novo mundo
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A vigésima-oitava da minha lista do Clube da
Esquina é Canção Postal, de Lô Borges e Ronaldo Bastos, do famoso "Disco
do Tênis" (Lô Borges, 1972). Música de distinta melancolia, me parece que poderia
ser a parte 2 de Um Girassol da Cor do seu Cabelo, uma canção de despedida. No auge do terror no Brasil, essa partida
forçada que é o sub-texto da canção é tocante no que diz respeito a uma
juventude que tinha a vida pela frente e se sacrifica em nome de um
sonho de um mundo, de um país, de uma cidade melhor. A sequência
harmônica crucial do A da música é um exemplo didático de como
transformar os acordes, passo a passo, alterando uma ou duas notas de
cada vez, o que propicia um efeito de lenta travessia em direção a um
destino sombrio... O Sol maior, tom da música, vai se transformando em
Sol diminuto, Fá Sustenido com Sétima, Fá sustenido meio diminuto pra
resolver no seu irmão mais triste, o relativo Mi menor. Essa seta
apontando a melancolia é a chave pra músicas como: Um Girassol, Faça
Seu Jogo, Trem de Doido, Homem da Rua, Não Se Apague Esta Noite, Como o
Machado, Eu Sou Como Você É, a produção já de alto nível de elaboração
do Lô com 20 anos de idade. Mas Canção Postal me parece ser mais
exemplar porque condensa elementos de todas as citadas acima, a indireta
referência a um destino trágico de um jovem que ainda "sabe dançar". O
cruzamento de identidades se sobrepõe ao que seria um mero amor
romântico saudoso, "eu quero ver você, ter você, ser você, amar você". O ingênuo da melodia de curtíssima tessitura (de fá sustenido a dó ,
no campo de sol) e o profundo da composição se expressam no arranjo:
os violões de Lô, Novelli e Nelson Ângelo e o bandolim de Beto Guedes se
tornam baixo, condução harmônica e arpeggio agudo de incisiva dor. O
"até manhã, até manhã, até manhã" soa no contexto um consolo ilusório,
uma esperança perdida de que o outro dia nos trará de volta o que já,
irremediavelmente, perdemos.
Canção Postal Quando alguém passar e perguntar por mim Não esqueça de dizer , até manhã, até manhã, até manhã Não esqueça de sorrir como eu tentei sorrir Quando alguém lembrar o que fui, o que sou, o que sei Diz pros amigos que eu ainda sei dançar, deixa o mundo virar para sempre No fundo do pomar, estrelas do lençol Eu quero ver você, ser você, amar você Quando você ouvir essa canção que eu fiz Não esqueça de sonhar até manhã, até manhã, até manhã.
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A penúltima da minha lista das 30 mais do
Clube da Esquina é Tudo que Você Podia Ser, de Lô e Márcio Borges, que
abria o disco Clube da Esquina, em 72. O violão rasqueado de Lô, com a
sexta afinada no tom ré, intercala acordes menores com sétimas
e nonas e décimas-primeiras, dentro do campo de ré menor mas com essas
dissonâncias abrindo os espectros dos modos para várias direções. Ao
mesmo tempo, a levada é enérgica, apontando para uma espécie de
samba-roque, com uma condução rítmica sincopada mas com os tempos fortes
enfáticos; tirante esse detalhe, nada mais distante entre Lô Borges e
Jorge Ben. As camadas de instrumentação vão se sobrepondo passo a passo,
o violão de Lô, a voz de Milton, a guitarra de Toninho, o órgão de
Wagner, a guitarra 12 de Tavito, a percussão de Nelson Ângelo e
Robertinho, e, por fim, o baixo de Beto Guedes e a bateria de Rubinho. A
forma é interessante: intro/ primeira estrofe- em duas partes / intro
/ segunda estrofe- em duas partes / ponte / segunda parte da estrofe/
estribilho instrumental / terceira estrofe / ponte / segunda parte da
estrofe / estribilho instrumental - fim. A letra emana aquele ponto da
vida em que parece que se está no meio; enquanto ainda se pode esperar
muita aventura no futuro, o destino da pessoa já não é mais uma página
em branco, várias chances foram perdidas , e daqui pra frente é pra
valer. Essa urgência dá o mote da música, e quando a melodia resolve (tudo que você podia ser..) repousa sempre (exceto na primeira estrofe)
num acorde surpreendente. Quer dizer, por mais que planejemos, o futuro
sempre escapa das nossas mãos ... impossível melhor abertura para um
disco ambicioso como o Clube da Esquina, do que uma canção que bota em
dúvida a direção em que estamos indo. Interessante ela ser também, toda,
na segunda pessoa, e não se tratar, mas uma vez, de uma canção de amor.
Tudo que você CONSEGUE ser ... OU NADA !!!
Tudo que você podia ser Com sol e chuva você sonhava Que ia ser melhor depois Você queria ser o grande herói das estradas Tudo que você queria ser Sei um segredo você tem medo Só pensa agora em voltar Não fala mais na bota e do anel de Zapata Tudo que você devia ser sem medo E não se lembra mais de mim Você não quis deixar que eu falasse de tudo Tudo que você podia ser na estrada Ah! Sol e chuva na sua estrada Mas não importa não faz mal Você ainda pensa e é melhor do que nada Tudo que você consegue ser ou nada
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Impossível
não terminar a saga da minha lista das mais geniais do Clube da Esquina
sem a canção que deu origem à série: Clube da Esquina, de Milton
Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges.
Uma loa lunar ao homens da esquina, que dividem até a solidão. A noite
propicia o silêncio, as portas vão se fechar na fecundação que o novo
dia enxergará. Esse prenúncio do novo e essa criação noturna deslocada
dos arroubos diários, esse tempo que passa invisível, e que se revela no
futuro, consistem na melhor definição do Clube, no anúncio de um fruto
coletivo que é gerado no escuro, sob a a pálida luz da lua.
Intuitivamente, Márcio Borges definia todo aquele espectro que
resultaria nessa obra musical , não só a canção, mas todo o 'movimento'
Clube da Esquina, todas aquelas canções. Um grande país de canções!
Milton foi subindo as notas melódicas do seu violão enquanto Lô foi
descendo os acordes, girando em torno de Lá maior mas sem nunca chegar
em casa, notom de Lá. O breve B em Ré mixolídio nos dá um outro ponto de vista, remetendo-nos novamente ao ponto de partida, no Curral D'El Rey, depois das portas fechadas, que se abram as janelas para o indizível e vago mundo lunar, depois do que ficamos pendurados no fio do Mi suspenso, fugindo, fugindo pra outro lugar.
Clube da Esquina Noite chegou outra vez, de novo na esquina Os homens estão, Todos se acham imortais Dividem a noite, e lua e até solidão Neste clube, a gente sozinha se vê pela última vez À espera do dia, naquela calçada Fugindo de outro lugar Perto da noite estou O rumo encontro nas pedras Encontro de vez um grande país Eu espero, espero do fundo da noite chegar Mas agora eu quero tomar suas mãos Vou buscá-la aonde for Venha até a esquina Você não conhece o futuro que tenho nas mãos Agora as portas vão todas se fechar No claro do dia, o novo encontrarei E no Curral D'El Rey Janelas se abram ao negro do mundo lunar Mas eu não me acho perdido No fundo da noite partiu minha voz Já é hora do corpo vencer a manhã Outro dia já vem e a vida se cansa na esquina Fugindo, fugindo pra outro lugar A versão do disco Milton (1970)
E, para fechar, essa bela interpretação do Bituca no documentário "A sede do peixe" em 1997.
Parte 4, feita no sufoco num sábado com mais trabalho que diversão. Mas vamos que vamos, e quem quiser passar pelas outras partes pode conferir aqui mesmo a lista completa do blog:
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Lista do Clube - a saga continua ! N° 19 UM GOSTO DE SOL, Milton e Ronaldo Bastos. Ponto de interseção com a mais
consagrada Cais, dos mesmos autores, Um Gosto de Sol se revela, por
outro lado, um viés talvez mais existencialista - em vez
de "e sei a vez de me lançar", o que implica, apesar de todo o
ceticismo, ainda uma ação, temos aqui a memória de um enigmático relance
como prova da inexorabilidade da perda ou, para uma pera esquecida na
fruteira, o apodrecimento dos sonhos e do riso que não voltam mais... A
incompletude humana se espelha nas reticências do que é dito, e
sobretudo do que não é dito mas é intuído e sentido na música. Um Gosto
de Sol é a ocasião propícia para o piano de Bituca, num 6/4 fluido que
as divisões "estacatas" dos acordes são contrabalançadas pelas longas
notas da linha de baixo ( no piano), enquanto o sutil reverb na voz de
Milton corrobora o distanciamento de toda a cena. O tema final , na
verdade é o mesmo que aparece no fim de Cais, e consiste numa linha de
baixo descendendo sobre blocos de acordes em Dó Menor ( Um Gosto de Sol é
em Dó Maior) e, de fato, a melodia é o baixo, que, depois de transpor
o trecho primeiro para a subdominante, modulando em seguida ao relativo
maior, passa por um acorde aumentado e a melodia em escala de tons
inteiros, o que confere um distinto senso de perda de direção que na
verdade é o subtexto de toda a canção. Gravada no disco Clube da Esquina
(1972), é o momento mais dramático do disco.
UM GOSTO DE SOL Alguém que vi de passagem Numa cidade estrangeira Lembrou os sonhos que eu tinha E esqueci sobre a mesa Como uma pêra se esquece Dormindo numa fruteira Como adormece o rio Sonhando na carne da pêra O sol na sombra se esquece Dormindo numa cadeira
Alguém sorriu de passagem Numa cidade estrangeira Lembrou o riso que eu tinha E esqueci entre os dentes Como uma pêra se esquece Sonhando numa fruteira
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A vigésima escolhida é
SAUDADE DOS AVIÕES DA PANAIR (Conversando no Bar), canção de Milton e
Fernando Brant na rara métrica de 5/4, tematizando o passado pré-64, o
tempo dos bondes, da primeira coca-cola, da campanha da Itália, sobretudo da companhia aérea brasileira Panair, perseguida pelo
regime militar e que faliu poucos anos depois do golpe. E tematizando,
também, por outro lado, a conversa do bar, de forma que os dois títulos
da música incorporam na verdade os dois temas da letra. Como é comum
nas melhores letras do Clube, vozes ocultas e frases malditas aparecem
como assombrações do passado na camisa de força de Minas, o lado sombrio
da cultura montanhesa- "no fundo do quintal morreu, morri a cada dia
dos dias que eu vivi". O coro semi-afinado de bebuns homens comuns na
mesa do bar conduz a música até que Milton assuma, com sua voz de Deus:
nada de novo existe neste planeta que não se fale aqui na mesa de bar.
Percussões variadas e agudas, violões rasqueados e súbitos, coros
gregos, sussurros sombrios, os meninos Paula e Bebeto, guitarra de
Toninho Horta, um caleidoscópio de sons e memórias... Para a magnífica
coda, a tempo vira para 3/4, e o ciclo de quartas desce como um
carrossel enquanto a cena é vista cada vez de um ponto de vista mais
distante, em volta da cidade .... Absolutamente magistral!
SAUDADE DOS AVIÕES DA PANAIR (Conversando no Bar)
Lá vinha o bonde no sobe e desce ladeira E o motorneiro parava a orquestra um minuto Para me contar casos da campanha da Itália E do tiro que ele não levou Levei um susto imenso nas asas da Panair Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno nas asas da Panair
E lá vai menino xingando padre e pedra E lá vai menino lambendo podre delícia E lá vai menino senhor de todo o fruto Sem nenhum pecado sem pavor O medo em minha vida nasceu muito depois descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair
Nada de triste existe que não se esqueça Alguém insiste e fala ao coração Tudo de triste existe e não se esquece Alguém insiste e fere o coração Nada de novo existe nesse planeta
Que não se fale aqui na mesa de bar E aquela briga e aquela fome de bola E aquele tango e aquela dama da noite E aquela mancha e a fala oculta Que no fundo do quintal morreu Morri a cada dia dos dias que eu vivi Cerveja que tomo hoje é apenas em memória Dos tempos da Panair A primeira Coca- Cola foi me lembro bem agora Nas asas da Panair A maior das maravilhas foi voando sobre o mundo nas asas da Panair
Em volta desta mesa velhos e moços Lembrando o que já foi Em volta dessa mesa existem outras falando tão igual Em volta dessas mesas existe a rua Vivendo seu normal Em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais Em volta da cidade
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FAZENDA é a de número 21, letra e música de
Nelson Ângelo, que abre o disco Gerais (1976), dando o tom mais 'regional'
de um álbum que contém coisas como Calix Bento, Carro de Boi, Circo
Marimbondo, a andina Caldera e Volver a
los 17 e a indígena Promessas do Sol. O poder de síntese do músico
Nelson Ângelo na feitura dessa letra é de se admirar, tecendo por meio
de imagens todo o cenário de uma experiência tão comum daquela época:
as férias na fazenda de algum parente... cabe ressaltar que o
cancioneiro do Clube tem um lugar deveras importante para o tema da
infância: podemos citar Era Menino ( Beto Guedes , Tavinho Moura e Murilo Antunes),
Tesouro da Juventude ( Tavinho e Murilo) [já comentada na 1a. parte desta lista], Pablo ( Milton e Ronaldo
Bastos), Gabriel ( Beto Guedes e Ronaldo Bastos), Maria Solidária (
Milton e Fernando Brant) Dindilin (Tavinho Moura e Fernando Brant )
Bola de Meia, Bola de Gude (Milton e Fernando) e outras. Fazenda
incorpora esse olhar pelas experiências sensoriais que a Fazenda e a
vida lúdica das férias representam, especialmente intensas quando se é
criança. Musicalmente ela se baseia em uma frase melódica simples, com
apenas 3 notas, mas escolhidas a dedo: a quinta , a sétima e a sétima
maior de um tom menor (no caso, Si), numa sequência de 3 acordes
menores : Bm7, Gm7 e F#m7. Nesse caso, parecemos estar em Si menor ou
seu relativo Ré maior. ( Milton talvez seja o grande precursor em
encadear belamente sequências de acordes menores sem maiores relações
clássicas de parentesco harmônico) Na segunda sessão desse grande A,
que leva a um "proto-refrão", vamos para Lá maior, tom próximo do
anterior, e a melodia , mantendo sua unidade, sobe o perfil a alturas
maiores, a voz de Milton com seu costumeiro reverb divino , parece vir
do alto da montanha : e no amanhã , nós ... A orquestração de Nelson
Ângelo risca notas agudíssimas, algumas curtas, outras longas, mas
sempre em uníssono, em vez de acordes; enquanto as flautas colorem
bicas no quintal, Beto Guedes canta algo como " tinha arara " como
segunda voz e na despedida, com a bateria espetacular de Robertinho,
ficamos suspensos naquele fio de memória ... Ficha Técnica: Milton
Nascimento - Voz e Violão Nelson Ângelo : Viola de 10, violão e
orquestração Novelli : Baixo e piano Robertinho Silva : Bateria Beto Guedes : Vocal, se não me engano...
FAZENDA
Água de beber Bica no quintal Sede de viver tudo E o esquecer Era tão normal que o tempo parava E a meninada respirava o vento Até vir a noite e os velhos falavam coisas dessa vida Eu era criança, hoje é você, e no amanhã, nós(2x) Água de beber Bica no quintal, sede de viver tudo E o esquecer Era tão normal que o tempo parava Tinha sabiá, tinha laranjeira, tinha manga rosa Tinha o sol da manhã E na despedida, tios na varanda, jipe na estrada E o coração lá(4x)
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MILAGRE DOS PEIXESé a escolhida de número 22,
na lista das 30 melhores do Clube da Esquina. Parceria entre Milton e
Fernando Brant, deu nome ao disco de estúdio, o mais experimental de
Bituca, e o de orquestra ao vivo, o mais grandioso. Nessa
música Milton consagra de vez sua assinatura harmônica, levando às
últimas consequências os cromatismos harmônicos descendentes que vinham
desde Canção do Sal, passando por Sentinela, Nada Será como Antes,
Novena, A Sede do Peixe (que antes era um tema instrumental) , e a
sublime Vera Cruz, e os movimentos harmônicos sobre o baixo pedal, que
se verificam em canções como Morro Velho, Fé Cega, Faca Amolada, Maria,
Maria, Ao que Vai Nascer, Os Povos, Amigo, Amiga, Cadê, Tema de Tostão e
outras. Para leigos, esses cromatismos são pequenos grandes
movimentos de fuga do campo harmônico onde estávamos no momento
anterior, enquanto o baixo pedal é a manutenção de uma nota grave com a
qual os acordes que mudam vão mantendo diferentes relações. Em Milagre
dos Peixes, ambos os procedimentos são fundidos como em nenhuma outra,
num equilíbrio que a destacou até dentro do repertório absurdamente rico
e original de seu criador, o que logo foi notado por Wayne Shorter, com
quem Bituca gravou, no mesmo ano, um álbum em parceria, Native
Dancer. Milagre dos Peixes é também um dos maiores feitos de seu
letrista, Fernando Brant, condensando o forte signo dos 'peixes' com o
jugo verde da ditadura e da já poderosa presença da televisão, amarrando
vários dos interesses fundamentais do credo, ou do ethos, do Clube ,
entre eles o elo redentor da amizade, o amargor da situação política, e
as metáforas de longo alcance, o que permitiu que não se reduzissem
àquele contexto histórico. A forma é exemplar : um estrilho que começa
(e termina) a parte cantada, uma estrofe, um B, que leva de novo ao A
e fecha com o estribilho, repetido para a improvisação vocal de Milton e
um chorus clássico para improvisação jazzística. Extra-terrestre ! :)
Ficha técnica: Mliton
: Voz e violão Toninho : guitarra Wagner : piano e órgão Nivaldo :
sax Robertinho : bateria orquestração : Wagner Tiso
MILAGRE DOS PEIXES
Eu vejo esses peixes e vou de coração Eu vejo essas matas e vou de coração à natureza
Telas falam colorido de crianças coloridas De um gênio televisor E no andor de nossos novos santos O sinal de velhos tempos Morte, morte, morte ao amor
Eles não falam do mar e dos peixes Nem deixam ver a moça, pura canção Nem ver nascer a flor, nem ver nascer o sol E eu apenas sou um a mais, um a mais A falar dessa dor, a nossa dor
Desenhando nessas pedras Tenho em mim todas as cores Quando falo coisas reais E no silêncio dessa natureza Eu que amo meus amigos Livre, quero poder dizer
Eu vejo esses peixes e dou de coração
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A vigésima terceira é PEDRA DA LUA, de Toninho
Horta e do saudoso poeta e letrista Cacaso. Toninho é este artista
impressionante e expressionista da harmonia, e nessa canção ele já
inicia o discurso com um acorde altamente
dissonante , um alterado com a seguinte cifra : E7M(b10), segundo a
nomenclatura do mestre mundial em teoria da harmonia, o brasileiro
Fábio Fabio Adour. O que é mais fascinante é como Toninho consegue dar sequência lógica
funcional a acordes aparentemente "irracionais", e a metáfora da pedra
da lua converge perfeitamente à estranheza de alguns acordes. A música
acaba por se revelar como uma colcha de retalhos de fragmentos de
memórias, e a mãe é a figura central. A infância é mais uma vez
resgatada com imagens aparentemente desconexas , pequenos jogos de
palavras com múltiplas ressifignações (lembrei desse termo vendo a
entrevista do Gil no Jô !), e a pedra da lua, a mais enigmática... A
forma, que, enredando sutilmente o fim de uma estrofe com o início de
outra, proporciona um aspecto cíclico, faz com que tenhamos mais uma
vez , tirando a introdução vamp nesse acorde de Mi alterado já referido
acima, apenas uma seção, um A repetido , enredado e diferido, mas não um
B contrastante. Talvez, do ponto de vista da estrutura formal, a
"lição" mais clara da apreciação da obra do Clube seja essa
sinteticidade que permite as maiores aventuras harmônico - melódico -
rítmicas sem que a fruição da canção se perca num hermetismo, numa
música para músicos. Essa relação equilibrada com procedimentos
arquetípicos da música popular no fim das contas aparece muito sob o
aspecto da forma. Aqui, por exemplo, temos essa seção principal da
música com 12 compassos, o que é um número presente , por exemplo, no
blues ... temos também em comum esse clima melancólico, profundo, perene
que as pedras pontudas dos acordes nos arranham os ouvidos e
corações...
PEDRA DA LUA
Dia, mania Tarde covarde, noite açoite Minha mãe calma e serena Com seu sorriso inseguro Toda vestida de branco Hoje parece mentira Hoje parece verdade Menino levante cedo Menino não chegue tarde Dia folia, tarde covarde Minha mãe no seu piano Morrendo dentro da tarde Com seu sorriso mais puro Toda vestida de branco Velando os meus passos Velando os meus tropeços Menino não morra cedo Menino não chegue tarde Dia mania...
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A vigésima-quarta da nossa lista é PAIXÃO E FÉ, de Tavinho Moura e Fernando Brant. Esse clássico que toca todo dia na Rádio Inconfidência às 6 da tarde (ou pelo menos tocava) celebra as raízes religiosas da cultura interiorana mineira, evocando
as procissões, os cultos católicos entranhados na alma alterosa. Tavinho, com sua harmonia arrojada de acordes perfeitos, e métrica
irregular, sai de lá maior , e rapidamente para mi maior, para
desembocar em sol maior no refrão. Essas constantes modulações soam
como degraus ascendentes frente à revelação espiritual da fé e da
paixão. A agonia fica por conta de súbitos empréstimos modais que se
resolvem via cromatismos ascendentes heterodoxos. Milton a gravou na
super-produção do disco Clube da Esquina 2, onde ele experimentou
particularmente o recurso de sua própria voz dobrada (aqui alternando
entre intervalos de terças e oitavas), enfatizando aquele aspecto
místico - religioso do seu canto. Beto Guedes estrela no seu virtuoso
bandolim e os Canarinhos de Petrópolis fazem o contraponto angelical
dessa canção de louvor à Fé e à Paixão. Clássico Imortal, e um exemplo
de como a música pode abordar a religiosidade cristã sem aquele
pedantismo evangélico que tanto caracteriza o gênero gospel .
PAIXÃO E FÉ
Já bate o sino, bate na catedral E o som penetra todos os portais A igreja está chamando seus fiéis Para rezar por seu Senhor Para cantar a ressureição
E sai o povo pelas ruas a cobrir De areia e flores as pedras do chão Nas varandas vejo as moças e os lençóis Enquanto passa a procissão Louvando as coisas da fé
Velejar, velejei No mar do Senhor Lá eu vi a fé e a paixão Lá eu vi a agonia da barca dos homens
Já bate o sino, bate no coração E o povo põe de lado a sua dor Pelas ruas capistranas de toda cor Esquece a sua paixão Para viver a do Senhor
Esses dias à volta com perdas do quilate de Oscar Niemeyer e Dave Brubeck, é inevitável pensar no sentido cultural que guarda o procedimento da homenagem, dentro da seara maior da memória social. A morte, lógico, é assunto inescapável para o historiador, pois está ali como componente indissociável do Tempo, matéria-prima de seu ofício. Nos estudos sobre museologia e patrimônio, parte predominante de minhas atuais pesquisas, muitas discussões giram justamente em torno das formas com que a sociedade intenta, simbólica e materialmente, enfrentar a morte enquanto fenômeno culturalmente percebido. Desse desejo brotam os mausoléus, epitáfios, necrológios, obituários, estátuas e monumentos para imortalizar, tombamentos de casas onde residiram aqueles que devem ser lembrados, por vezes transformadas em museus, memoriais e afins. Certa vez ganhei do pai de um grande amigo que visitara Nova York uma foto do mosaico em pedra portuguesa da calçada do Central Park que é parte de um memorial dedicado a John Lennon, um dos motes dessa postagem de hoje. Assim as pessoas, no intuito de lembrar quem partiu, e neste processo procurar definir coletivamente o que deve compor essa lembrança, modificam o espaço da cidade, escrevem longos textos ou pequenas mensagens, marcam o mundo de forma a denotar esse traço específico da passagem do tempo. . Um ótima análise desse fenômeno está em The past is a foreing country, de David Lowenthal, obra de grande erudição que ando tentando ler em meio à labuta rotineira de final de semestre. Meu projeto de pesquisa Patrimônio urbano e música popular aborda o assunto, ao tratar de lugares como Strawberry Field e Graceland.
Dentre as muitas práticas dedicadas a promover a rememoração dos que passaram, as homenagens musicais são das mais poderosas, especialmente quando feitas de modo a transcender o contexto específico do falecimento do homenageado e de alguma forma possibilitar de maneira mais intensa a vinculação entre o passado da perda e o presente do ato de lembrar, estabelecendo um elo de sentido e beleza que se desprende da morte em si, e na passagem do lamento à celebração, permitem atualizar o significado da presença do homenageado no mundo e na vida de quem as ouve. esse modo, homenageio todos esses que deixaram sua marca e perduraram enquanto houver que delas fale ou ouça, através de canções feitas para Lennon.
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Estamos em 2014 e achei por bem atualizar essa postagem. O projeto que mencionei anteriormente caminhou um bocado, já teve parte de seus resultados apresentados em eventos acadêmicos, bolsistas que se envolveram, relatórios parciais, pesquisas em campo. Acabei de receber a aprovação do CNPq para continuá-lo, e interpreto esse apoio como reconhecimento ao trabalho que vem sendo realizado. Em breve trarei mais informações e postagens de alguns dos resultados aqui no blog.
Por fim, achei que uma homenagem a Lennon merecia ser complementada com canções. Me dei conta, numa rápida comparação entre as que foram compostas por seus irmãos de jornada, como Harrison (All those years ago) e McCartney (Here today) expressam visões complementares de seu amigo. All those years ago remete ao Lennon do mundo, num tom de tributo e até acerto de contas do presente com o passado, profundamente honesto como era próprio do George, apontando para a vileza com que Lennon foi por vezes tratado ("While they treated you like a dog"; "And you were the one they backed up to the wall", etc...) e fugindo de uma interpretação rósea da trajetória do companheiro. Here today fala de dentro, da intimidade de parceiros de uma vida, e é para aí que converge o exercício de rememoração de Paul, a partir do mote da constatação da presença/ausência de John. Também aqui há o exercício de uma franqueza, no reconhecimento do que era diferença entre os dois ("You'd probably laugh and say that we were worlds apart"), distância que era superada pelo afeto.
Mas as duas canções coincidem na forma como apresentam a enunciação, pois nas duas o eu lírico dirigi-se diretamente a Lennon, produzindo um diálogo com o homenageado - ou mais efetivamente, com esse destinatário que é produzido no gesto mesmo da rememoração. Se Harrison insere a voz de Lennon por meio de referências a suas canções (All you need is love, Imagine), McCartney deduz das lembranças frases que poderiam sair de sua boca "If you were here today". Os arranjos das duas gravações, por seu turno, são contrastantes e correspondem ao quadro que propus inicialmente. O de Here today é intimista, centrado no confessional amálgama de voz e violão de Paul, acompanhado delicadamente pelo quarteto de cordas (remissão inevitável a Yesterday). Já All those years ago traz uma arranjo de banda, meio jazzy, até aliviando no clima alguma aspereza que a letra traz, com o detalhe de trazer Ringo na bateria e Paul, junto com Linda e Denny Laine, nos backing vocals. Dois belos tributos a alguém que deixou sua marca no mundo e nas pessoas.
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