Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

11 de dezembro de 2012

Compatibilidade de gênios

Umas poucas vezes na História da Música Popular Brasileira ocorrem parcerias "siamesas", dessas que constituem uma obra toda, de modo que não conseguimos separar no imaginário os membros que acabam configurando um verdadeiro "ente". É nesse nível de compatibilidade de gênios que enquadro a dupla formada por João Bosco e Aldir Blanc, autores de canções memoráveis e figuras protagonistas do cenário cultural e político brasileiro, especialmente durante a década de 1970. Ao ver hoje algumas postagens no admirável Arquivos Vinis (quem quiser conhecer, recomendo essa página fantástica no Facebook) não resisti a furtar desse dia dedicado às correções de trabalhos alguns minutos para gravar aqui minha admiração pelos dois, aos quais gostaria de ter devotado mais atenção na minha tese, mas fica aí a sugestão para os navegantes que venham a singrar as "águas da Guanabara" da pesquisa sobre a MPB, eles merecem muito estudos de maior profundidade.

LP "Linha de Passe". João Bosco. RCA Victor. 1979. Arte de Mello Menezes.



Linha de Passe (João Bosco/ Paulo Emílio/ Aldir Blanc), com João Bosco e Yamandu Costa

9 de dezembro de 2012

As 30 mais geniais do Clube da Esquina, por Pablo Castro - 5a. parte

Chegamos à 5a. parte da lista das 30 selecionadas e analisadas por Pablo Castro, numa iniciativa que concretizou uma ideia antiga sobre a qual já havíamos conversado há um bom tempo. Foi em boa hora! A repercussão tem sido fantástica, tanto no facebook quanto aqui no blog. As visitas, os comentários e a participação de tantos amigos são fundamentais, e nos motivam muito a continuar e pensar em novos desdobramentos dessa história. Gostaria de agradecer a todos, e um agradecimento extra aos que estão acompanhando o blog, que brevemente irá passar por mudanças que espero irão torná-lo um espaço ainda mais interessante. Inclusive estão convidados a sugerir temas para as próximas porque com certeza outras listas como essa virão. Valeu!
Luiz H. Garcia

--##--

Terminei minha Lista das 30 mais do Clube [completa, aqui] com a nítida sensação de que se eu fizesse outra, com outras 30, ela não ficaria atrás em termos de qualidade. Tal o vulto de qualidade e quantidade que a produção cancional do Clube deixará para as próximas gerações, enriquecendo o já absurdo panteão da Música Brasileira. Ao começar a lista, despretensiosamente numa dessas madrugadas, não imaginava que ela daria tanta repercussão positiva.

Me descabelei aqui para tentar não deixar de fora músicas como Fé Cega, Faca Amolada, Uma Canção, Luz e Mistério, Ponta de Areia, Léo, Paula e Bebeto, Fairy Tale Friend, Cravo e Canela, Nascente, E Daí, Bodas, Sentinela, Dona Olympia, Outubro, Três Pontas, Choveu, O Medo de amar é o Medo de ser Livre, Viagem das Mãos e tantas outras que mereceriam estar na lista das melhores de qualquer compositor. Tentei equilibrar , dentro de tão apertado limite, os compositores, tanto músicos quanto letristas, as fases, os discos importantes, as temáticas e os estilos, e ainda jogar nova luz a canções pouco lembradas, como Tema dos Deuses, Rio Doce, Tiro Cruzado , Caso Você Queira Saber, e outras.

Devo agradecer, de imediato, meu parceiro Luiz Henrique Assis Garcia , que se empolgou com a idéia e replicou minhas modestas resenhas em seu excelente blog Massa Crítica Música Popular. Além dele, a excepcional força que o grande intelectual Idelber Avelar Guarani Kaiowá me deu, chamando a atenção de vários de seus amigos no fb, gente da mais alta qualidade. Além de meus amigos músicos , como Makely Kaiowá , Humberto Junqueira, Alieksey Vianna, Avelar Junior, Kristoff Silva, Flávio Henrique, Péricles Garcia, o grande Daniel Dan Fernandes que também montou uma playlist com as músicas, e inúmeros amigos e entusiastas da obra do Clube, inclusive alguns participantes, como o Márcio Borges, o Murilo Antunes, Telo e Solange Borges, que comentaram aqui, aprovando minha iniciativa. Fico realmente muito feliz em poder contribuir para a apreciação dessa obra monumental na Música Brasileira. Beijos a todos !
Pablo Castro

--##--
A vigésima- quinta da nossa lista é Feira Moderna, de Beto Guedes, Lô Borges e Fernando Brant. Feira Moderna é um marco em vários sentidos. No contexto do Clube, foi a primeiro flerte mais sério com o roque, com seu riff de baixo e intermezzo cromático tocados com aquela afirmação extravasada do gênero britânico. Defendida primeiramente pela banda Som Imaginário em um festival [essa versão, aqui], com a voz estridente e nervosa do saudoso Zé Rodrix e as metáforas típicas do Clube, aqui saltando à vista o temerário sorriso, a velha chaga, o medo, e a Feira Moderna aqui não pode ser outra coisa que não a TV. Independência ou morte é uma alusão clara da aliança da televisão (particularmente a Globo) com o regime militar, a paz na terra amém poderia ter sido grafada como a pax ... interessante notar como na primeira versão "o meu coração é velho" e na segunda , gravada pelo compositor Beto Guedes seis anos mais tarde, passou a ter o verso mais positivo: "meu coração é novo" [essa versão, aqui]. Dentro dessa intereseção roqueira do Clube com o Rock, poderíamos ter incluído a ainda mais tipicamente roqueira Você Fica Melhor Assim ( Lô e Tavinho Moura), ou coisas como Fairy Tale Friend (Cadê) (Milton e Ronaldo), Idolatrada (Milton e Brant), Lumiar (Beto e Ronaldo), mas acho que Feira Moderna é mais exemplar desse movimento : uma estrofe (única ) de 7 (!?) compassos ( em versos de 3+3 +1 ), e um longo refrão de duas metades de 11 (!!??) compassos remetem às idiossincrasias dos Beatles, repletos desses tamanhos irregulares de partes da forma, e os ganchos instrumentais são inspirados indubitavelmente nesse ethos da banda de rock . Daí ter sido a música de trabalho do Som Imaginário, em sua primeira e mais célebre formação, faz todo o sentido. Harmonicamente, a música gira em torno de Lá maior, repousando em seu relativo Fá sustenido menor durante o longo estribilho, e voltando ao tom por intermédio da subdominante , na famosa cadência plagal, típica do roque. É um marco na relação da música brasileira com a inundação invasiva anglo-saxônica, sem os hilários arremedos histriônicos dos Mutantes nem com a piegas reverência envergonhada da Jovem Guarda.
 


Feira Moderna

Tua cor é o que eles olham , velha chaga
Teu sorriso é o que eles temem, medo, medo

Feira Moderna, um convite sensual
oh telefonista , se a distância já morreu
meu coração é velho
meu coração é morto
e eu nem li o jornal

Nesta caverna o convite é sempre igual
oh telefonista, se a distância já morreu
independência ou morte
descansa em berço forte
a paz na terra, amém.


--##--

Vento de Maio, de Telo e Márcio Borges, logrou ser a vigésima-sexta da Lista que tá cada vez mais difícil de fechar ... essa balada esquineira em 6/8 provou mais uma vez a rara estirpe da família Borges, em que o então menino Telo Borges fez uma trilha pra teatro e seu irmão mais velho Marcinho musicou um trecho que acabou sendo esse standard do Clube da Esquina. Uma primeira frase postula o início confiante em Sol maior : "Vento de raio, rainha de maio, estrela cadente ..." então chega de repente o "fim da viagem", e ficamos vagueando de forma ambígua nos campos das tonalidades, ainda perto de Sol, mas com acordes distantes como Ebm7, quando já não dava mais pra voltar atrás. E depois o épico B da música, em Sol menor, desnuda o subtexto de uma das raras músicas de amor romântico do Clube da Esquina, com simbolismos oníricos e referências veladas, e algumas imagens bastante inspiradas. A melodia repousa em sétimas maiores e nonas, os intervalos mais surrealistas, em frases de arpeggio, e poucos graus conjuntos, e Elis a interpretou magistralmente [para ouvir, aqui], de forma insuperável, mas o tipo de arranjo que mais encarna o espírito do clube é mesmo a versão de Lô Borges*. Um estupendo trabalho em família!
*Também canta Solange Borges [nota do editor]

 
 

Vento de Maio

Vento de Maio rainha de raio estrela cadente

Chegou de repente o fim da viagem
Agora já não dá mais pra voltar atrás

Rainha de maio valeu o teu pique
Apenas para chover no meu piquenique

Assim meu sapato coberto de barro
Apenas pra não parar nem voltar atrás

Chegou de repente o fim da viagem
Agora já não dá mais...


Vento de raio rainha de Maio estrela cadente

Chegou de repente o fim da viagem
Agora já não dá mais pra voltar atrás

Rainha de maio valeu o teu pique
Apenas para chover no meu piquenique

Assim meu sapato coberto de barro
Apenas pra não parar nem voltar atrás

Rainha de maio valeu o teu pique
Apenas para chover...


Nisso eu escuto no rádio do carro a nossa canção
Sol girassol e meus olhos abertos pra outra emoção
E quase que eu me esqueci que o tempo não pára
Nem vai esperar
Vento de Maio rainha dos raios de sol


Vá no teu pique estrela cadente até nunca mais
Não te maltrates nem tentes voltar o que não tem mais vez
Nem lembro teu nome nem sei
Estrela qualquer lá no fundo do mar
Vento de Maio rainha dos raios de sol


Chegou de repente o fim da viagem
Agora já não dá mais pra voltar atrás
Rainha de maio valeu o teu pique

Apenas para chover no meu piquenique
Assim meu sapato coberto de barro

Apenas pra não parar nem voltar atrás


Rainha de Maio valeu o teu pique

Apenas para chover no meu piquenique...

--##--

A vigésima -sétima calhou de ser Canção do Novo Mundo (não confundir com Canção da América), de Beto Guedes e Ronaldo Bastos. Agoniei-me aqui com qual balada de primeiro nível que eu incluiria dos dois: Amor de Índio, Lumiar, Sol de Primavera, O Sal da Terra foram as que mais me botaram em dúvida . Decidi por Canção do Novo Mundo porque é uma resposta ao terrível desaparecimento forçado de John Lennon, e é quase como se a Canção recuperasse o sentido num evento tão torpe. Numa época de abertura política, as letras do Clube tendiam a metáforas mais positivas, ao contrário dos simbolismos mais negros dos anos setenta, mas Canção do Novo Mundo bota o dedo na ferida , sem datar ou reduzir a letra ao acontecimento revoltante que a inspirou. Também pelo fato de a composição fazer uso de elementos rítmicos bastante notáveis, particularmente o uso de compassos diferentes intercalados para dar naturalidade à divisão melódica. Temos 2 compassos de 5/4 e um de 6/4 entrecortados pelo 4/4 preponderante na música. Esse recurso super heterodoxo foi usado também na magnífica Ponta de Areia, de Milton e Brant, com resultado idêntico: a melodia tem preponderância sobre a regularidade rítmica da canção, o que confere ainda mais distintividade à composição. A forma é clássica, com 4 estrofes (uma instrumental) estrofes e três Bs (um instrumental), que modula de Dó maior para seu relativo paralelo Mi bemol, um arranjo à la George Martin e um solo de Toninho à la George Harrison, e a tessitura alta de melodia consistente: o mesmo perfil no tom sobe uma quarta para o grande finale. Beto toca bateria na versão original do disco Contos da Lua Vaga (1981), que, infelizmente, não consegui achar em versão completa no youtube. Felizmente Milton Nascimento gravou essa música em um disco ao vivo, com orquestra, em 1983 [para ver e ouvir, aqui]. Beto e Ronaldo conseguiram aqui esse equilíbrio entre elementos distintivos e clássicos que faz dessa canção o protótipo perfeito de uma canção de Lennon & McCartney que nenhum deles deixaria de assinar se a tivessem feito.

Quem sonhou
Só vale se já sonhou demais
Vertente de muitas gerações
Gravado em nosso corações
Um nome se escreve fundo
As canções em nossa memória
Vão ficar
Profundas raízes vão crescer
A luz das pessoas
Me faz crer
E eu sinto que vamos juntos

Oh! Nem o tempo amigo
Nem a força bruta
Pode um sonho apagar

Quem perdeu o trem da história por querer
Saiu do juízo sem saber
Foi mais um covarde a se esconder
Diante de um novo mundo

Quem souber dizer a exata explicação
Me diz como pode acontecer
Um simples canalha mata um rei
Em menos de um segundo
Oh! Minha estrela amiga
Porque você não fez a bala parar

Oh! Nem o tempo amigo
Nem a força bruta
Pode um sonho apagar

Quem perdeu o trem da história por querer
Saiu do juízo sem saber
Foi mais um covarde a se esconder
Diante de um novo mundo



--##--

A vigésima-oitava da minha lista do Clube da Esquina é Canção Postal, de Lô Borges e Ronaldo Bastos, do famoso "Disco do Tênis" (Lô Borges, 1972). Música de distinta melancolia, me parece que poderia ser a parte 2 de Um Girassol da Cor do seu Cabelo, uma canção de despedida. No auge do terror no Brasil, essa partida forçada que é o sub-texto da canção é tocante no que diz respeito a uma juventude que tinha a vida pela frente e se sacrifica em nome de um sonho de um mundo, de um país, de uma cidade melhor. A sequência harmônica crucial do A da música é um exemplo didático de como transformar os acordes, passo a passo, alterando uma ou duas notas de cada vez, o que propicia um efeito de lenta travessia em direção a um destino sombrio... O Sol maior, tom da música, vai se transformando em Sol diminuto, Fá Sustenido com Sétima, Fá sustenido meio diminuto pra resolver no seu irmão mais triste, o relativo Mi menor. Essa seta apontando a melancolia é a chave pra músicas como: Um Girassol, Faça Seu Jogo, Trem de Doido, Homem da Rua, Não Se Apague Esta Noite, Como o Machado, Eu Sou Como Você É, a produção já de alto nível de elaboração do Lô com 20 anos de idade. Mas Canção Postal me parece ser mais exemplar porque condensa elementos de todas as citadas acima, a indireta referência a um destino trágico de um jovem que ainda "sabe dançar". O cruzamento de identidades se sobrepõe ao que seria um mero amor romântico saudoso, "eu quero ver você, ter você, ser você, amar você". O ingênuo da melodia de curtíssima tessitura (de fá sustenido a dó , no campo de sol) e o profundo da composição se expressam no arranjo: os violões de Lô, Novelli e Nelson Ângelo e o bandolim de Beto Guedes se tornam baixo, condução harmônica e arpeggio agudo de incisiva dor. O "até manhã, até manhã, até manhã" soa no contexto um consolo ilusório, uma esperança perdida de que o outro dia nos trará de volta o que já, irremediavelmente, perdemos.
 


Canção Postal


Quando alguém passar e perguntar por mim
Não esqueça de dizer , até manhã, até manhã, até manhã

Não esqueça de sorrir como eu tentei sorrir
Quando alguém lembrar o que fui, o que sou, o que sei

Diz pros amigos que eu ainda sei dançar,
deixa o mundo virar para sempre

No fundo do pomar, estrelas do lençol
Eu quero ver você, ser você, amar você

Quando você ouvir essa canção que eu fiz
Não esqueça de sonhar até manhã, até manhã, até manhã.


--##--

A penúltima da minha lista das 30 mais do Clube da Esquina é Tudo que Você Podia Ser, de Lô e Márcio Borges, que abria o disco Clube da Esquina, em 72. O violão rasqueado de Lô, com a sexta afinada no tom ré, intercala acordes menores com sétimas e nonas e décimas-primeiras, dentro do campo de ré menor mas com essas dissonâncias abrindo os espectros dos modos para várias direções. Ao mesmo tempo, a levada é enérgica, apontando para uma espécie de samba-roque, com uma condução rítmica sincopada mas com os tempos fortes enfáticos; tirante esse detalhe, nada mais distante entre Lô Borges e Jorge Ben. As camadas de instrumentação vão se sobrepondo passo a passo, o violão de Lô, a voz de Milton, a guitarra de Toninho, o órgão de Wagner, a guitarra 12 de Tavito, a percussão de Nelson Ângelo e Robertinho, e, por fim, o baixo de Beto Guedes e a bateria de Rubinho. A forma é interessante: intro/ primeira estrofe- em duas partes / intro / segunda estrofe- em duas partes / ponte / segunda parte da estrofe/ estribilho instrumental / terceira estrofe / ponte / segunda parte da estrofe / estribilho instrumental - fim. A letra emana aquele ponto da vida em que parece que se está no meio; enquanto ainda se pode esperar muita aventura no futuro, o destino da pessoa já não é mais uma página em branco, várias chances foram perdidas , e daqui pra frente é pra valer. Essa urgência dá o mote da música, e quando a melodia resolve (tudo que você podia ser..) repousa sempre (exceto na primeira estrofe) num acorde surpreendente. Quer dizer, por mais que planejemos, o futuro sempre escapa das nossas mãos ... impossível melhor abertura para um disco ambicioso como o Clube da Esquina, do que uma canção que bota em dúvida a direção em que estamos indo. Interessante ela ser também, toda, na segunda pessoa, e não se tratar, mas uma vez, de uma canção de amor. Tudo que você CONSEGUE ser ... OU NADA !!!

 

Tudo que você podia ser

Com sol e chuva você sonhava
Que ia ser melhor depois
Você queria ser o grande herói das estradas
Tudo que você queria ser


Sei um segredo você tem medo
Só pensa agora em voltar
Não fala mais na bota e do anel de Zapata
Tudo que você devia ser
sem medo


E não se lembra mais de mim
Você não quis deixar que eu falasse de tudo
Tudo que você podia ser
na estrada


Ah! Sol e chuva na sua estrada
Mas não importa não faz mal
Você ainda pensa e é melhor do que nada
Tudo que você consegue ser
ou nada


--##--

Impossível não terminar a saga da minha lista das mais geniais do Clube da Esquina sem a canção que deu origem à série: Clube da Esquina, de Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges. Uma loa lunar ao homens da esquina, que dividem até a solidão. A noite propicia o silêncio, as portas vão se fechar na fecundação que o novo dia enxergará. Esse prenúncio do novo e essa criação noturna deslocada dos arroubos diários, esse tempo que passa invisível, e que se revela no futuro, consistem na melhor definição do Clube, no anúncio de um fruto coletivo que é gerado no escuro, sob a a pálida luz da lua. Intuitivamente, Márcio Borges definia todo aquele espectro que resultaria nessa obra musical , não só a canção, mas todo o 'movimento' Clube da Esquina, todas aquelas canções. Um grande país de canções! Milton foi subindo as notas melódicas do seu violão enquanto Lô foi descendo os acordes, girando em torno de Lá maior mas sem nunca chegar em casa, notom de Lá. O breve B em Ré mixolídio nos dá um outro ponto de vista, remetendo-nos novamente ao ponto de partida, no Curral D'El Rey, depois das portas fechadas, que se abram as janelas para o indizível e vago mundo lunar, depois do que ficamos pendurados no fio do Mi suspenso, fugindo, fugindo pra outro lugar.


Clube da Esquina

Noite chegou outra vez, de novo na esquina
Os homens estão,
Todos se acham imortais
Dividem a noite, e lua e até solidão
Neste clube, a gente sozinha se vê
pela última vez
À espera do dia, naquela calçada
Fugindo de outro lugar

Perto da noite estou
O rumo encontro nas pedras
Encontro de vez um grande país
Eu espero, espero do fundo da noite chegar
Mas agora eu quero tomar suas mãos
Vou buscá-la aonde for
Venha até a esquina
Você não conhece o futuro que tenho nas mãos

Agora as portas vão todas se fechar
No claro do dia, o novo encontrarei

E no Curral D'El Rey
Janelas se abram ao negro do mundo lunar
Mas eu não me acho perdido
No fundo da noite partiu minha voz
Já é hora do corpo vencer a manhã
Outro dia já vem e a vida se cansa na esquina
Fugindo, fugindo pra outro lugar

A versão do disco Milton (1970)


 

E, para fechar, essa bela interpretação do Bituca no documentário 
"A sede do peixe" em 1997.

8 de dezembro de 2012

As 30 mais genais do Clube da Esquina, por Pablo Castro - LISTA 1 Parte 4

Parte 4, feita no sufoco num sábado com mais trabalho que diversão. Mas vamos que vamos, e quem quiser passar pelas outras partes pode conferir aqui mesmo a lista completa do blog:

--##-- 

Lista do Clube - a saga continua ! N° 19 UM GOSTO DE SOL, Milton e Ronaldo Bastos. Ponto de interseção com a mais consagrada Cais, dos mesmos autores, Um Gosto de Sol se revela, por outro lado, um viés talvez mais existencialista - em vez de "e sei a vez de me lançar", o que implica, apesar de todo o ceticismo, ainda uma ação, temos aqui a memória de um enigmático relance como prova da inexorabilidade da perda ou, para uma pera esquecida na fruteira, o apodrecimento dos sonhos e do riso que não voltam mais... 

A incompletude humana se espelha nas reticências do que é dito, e sobretudo do que não é dito mas é intuído e sentido na música. Um Gosto de Sol é a ocasião propícia para o piano de Bituca, num 6/4 fluido que as divisões "estacatas" dos acordes são contrabalançadas pelas longas notas da linha de baixo ( no piano), enquanto o sutil reverb na voz de Milton corrobora o distanciamento de toda a cena. 

O tema final , na verdade é o mesmo que aparece no fim de Cais, e consiste numa linha de baixo descendendo sobre blocos de acordes em Dó Menor ( Um Gosto de Sol é em Dó Maior) e, de fato, a melodia é o baixo, que, depois de transpor o trecho primeiro para a subdominante, modulando em seguida ao relativo maior, passa por um acorde aumentado e a melodia em escala de tons inteiros, o que confere um distinto senso de perda de direção que na verdade é o subtexto de toda a canção. Gravada no disco Clube da Esquina (1972), é o momento mais dramático do disco.

UM GOSTO DE SOL

Alguém que vi de passagem

Numa cidade estrangeira
Lembrou os sonhos que eu tinha
E esqueci sobre a mesa
Como uma pêra se esquece
Dormindo numa fruteira
Como adormece o rio
Sonhando na carne da pêra
O sol na sombra se esquece
Dormindo numa cadeira

Alguém sorriu de passagem

Numa cidade estrangeira
Lembrou o riso que eu tinha
E esqueci entre os dentes
Como uma pêra se esquece
Sonhando numa fruteira


--##--
A vigésima escolhida é SAUDADE DOS AVIÕES DA PANAIR (Conversando no Bar), canção de Milton e Fernando Brant na rara métrica de 5/4, tematizando o passado pré-64, o tempo dos bondes, da primeira coca-cola, da campanha da Itália, sobretudo da companhia aérea brasileira Panair, perseguida pelo regime militar e que faliu poucos anos depois do golpe. E tematizando, também, por outro lado, a conversa do bar, de forma que os dois títulos da música incorporam na verdade os dois temas da letra. Como é comum nas melhores letras do Clube, vozes ocultas e frases malditas aparecem como assombrações do passado na camisa de força de Minas, o lado sombrio da cultura montanhesa- "no fundo do quintal morreu, morri a cada dia dos dias que eu vivi". O coro semi-afinado de bebuns homens comuns na mesa do bar conduz a música até que Milton assuma, com sua voz de Deus: nada de novo existe neste planeta que não se fale aqui na mesa de bar. Percussões variadas e agudas, violões rasqueados e súbitos, coros gregos, sussurros sombrios, os meninos Paula e Bebeto, guitarra de Toninho Horta, um caleidoscópio de sons e memórias... Para a magnífica coda, a tempo vira para 3/4, e o ciclo de quartas desce como um carrossel enquanto a cena é vista cada vez de um ponto de vista mais distante, em volta da cidade .... Absolutamente magistral!

SAUDADE DOS AVIÕES DA PANAIR (Conversando no Bar)

Lá vinha o bonde no sobe e desce ladeira

E o motorneiro parava a orquestra um minuto
Para me contar casos da campanha da Itália
E do tiro que ele não levou
Levei um susto imenso nas asas da Panair
Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno nas asas da Panair

E lá vai menino xingando padre e pedra

E lá vai menino lambendo podre delícia
E lá vai menino senhor de todo o fruto
Sem nenhum pecado sem pavor
O medo em minha vida nasceu muito depois
descobri que minha arma é o que a memória guarda dos tempos da Panair

Nada de triste existe que não se esqueça

Alguém insiste e fala ao coração
Tudo de triste existe e não se esquece
Alguém insiste e fere o coração
Nada de novo existe nesse planeta

Que não se fale aqui na mesa de bar

E aquela briga e aquela fome de bola
E aquele tango e aquela dama da noite
E aquela mancha e a fala oculta
Que no fundo do quintal morreu
Morri a cada dia dos dias que eu vivi
Cerveja que tomo hoje é apenas em memória
Dos tempos da Panair
A primeira Coca- Cola foi me lembro bem agora
Nas asas da Panair
A maior das maravilhas foi voando sobre o mundo
nas asas da Panair

Em volta desta mesa velhos e moços

Lembrando o que já foi
Em volta dessa mesa existem outras falando tão igual
Em volta dessas mesas existe a rua
Vivendo seu normal
Em volta dessa rua uma cidade sonhando seus metais
Em volta da cidade


--##--

FAZENDA é a de número 21, letra e música de Nelson Ângelo, que abre o disco Gerais (1976), dando o tom mais 'regional' de um álbum que contém coisas como Calix Bento, Carro de Boi, Circo Marimbondo, a andina Caldera e Volver a los 17 e a indígena Promessas do Sol

O poder de síntese do músico Nelson Ângelo na feitura dessa letra é de se admirar, tecendo por meio de imagens todo o cenário de uma experiência tão comum daquela época: as férias na fazenda de algum parente... cabe ressaltar que o cancioneiro do Clube tem um lugar deveras importante para o tema da infância: podemos citar Era Menino ( Beto Guedes , Tavinho Moura e Murilo Antunes), Tesouro da Juventude ( Tavinho e Murilo) [já comentada na 1a. parte desta lista], Pablo ( Milton e Ronaldo Bastos), Gabriel ( Beto Guedes e Ronaldo Bastos), Maria Solidária ( Milton e Fernando Brant) Dindilin (Tavinho Moura e Fernando Brant ) Bola de Meia, Bola de Gude (Milton e Fernando) e outras. 

Fazenda incorpora esse olhar pelas experiências sensoriais que a Fazenda e a vida lúdica das férias representam, especialmente intensas quando se é criança. Musicalmente ela se baseia em uma frase melódica simples, com apenas 3 notas, mas escolhidas a dedo: a quinta , a sétima e a sétima maior de um tom menor (no caso, Si), numa sequência de 3 acordes menores : Bm7, Gm7 e F#m7. Nesse caso, parecemos estar em Si menor ou seu relativo Ré maior. ( Milton talvez seja o grande precursor em encadear belamente sequências de acordes menores sem maiores relações clássicas de parentesco harmônico) 

Na segunda sessão desse grande A, que leva a um "proto-refrão", vamos para Lá maior, tom próximo do anterior, e a melodia , mantendo sua unidade, sobe o perfil a alturas maiores, a voz de Milton com seu costumeiro reverb divino , parece vir do alto da montanha : e no amanhã , nós ... 

A orquestração de Nelson Ângelo risca notas agudíssimas, algumas curtas, outras longas, mas sempre em uníssono, em vez de acordes; enquanto as flautas colorem bicas no quintal, Beto Guedes canta algo como " tinha arara " como segunda voz e na despedida, com a bateria espetacular de Robertinho, ficamos suspensos naquele fio de memória ... 

Ficha Técnica: 
Milton Nascimento - Voz e Violão
Nelson Ângelo : Viola de 10, violão e orquestração
Novelli : Baixo e piano
Robertinho Silva : Bateria
Beto Guedes : Vocal, se não me engano...



FAZENDA

Água de beber

Bica no quintal
Sede de viver tudo
E o esquecer
Era tão normal que o tempo parava
E a meninada respirava o vento
Até vir a noite e os velhos falavam coisas dessa vida
Eu era criança, hoje é você, e no amanhã, nós(2x)
Água de beber
Bica no quintal, sede de viver tudo
E o esquecer
Era tão normal que o tempo parava
Tinha sabiá, tinha laranjeira, tinha manga rosa
Tinha o sol da manhã
E na despedida,
tios na varanda, jipe na estrada
E o coração lá(4x)


 

--##--
MILAGRE DOS PEIXES é a escolhida de número 22, na lista das 30 melhores do Clube da Esquina. Parceria entre Milton e Fernando Brant, deu nome ao disco de estúdio, o mais experimental de Bituca, e o de orquestra ao vivo, o mais grandioso. 

Nessa música Milton consagra de vez sua assinatura harmônica, levando às últimas consequências os cromatismos harmônicos descendentes que vinham desde Canção do Sal, passando por Sentinela, Nada Será como Antes, Novena, A Sede do Peixe (que antes era um tema instrumental) , e a sublime Vera Cruz, e os movimentos harmônicos sobre o baixo pedal, que se verificam em canções como Morro Velho, Fé Cega, Faca Amolada, Maria, Maria, Ao que Vai Nascer, Os Povos, Amigo, Amiga, Cadê, Tema de Tostão e outras. 

Para leigos, esses cromatismos são pequenos grandes movimentos de fuga do campo harmônico onde estávamos no momento anterior, enquanto o baixo pedal é a manutenção de uma nota grave com a qual os acordes que mudam vão mantendo diferentes relações. 

Em Milagre dos Peixes, ambos os procedimentos são fundidos como em nenhuma outra, num equilíbrio que a destacou até dentro do repertório absurdamente rico e original de seu criador, o que logo foi notado por Wayne Shorter, com quem Bituca gravou, no mesmo ano, um álbum em parceria, Native Dancer

Milagre dos Peixes é também um dos maiores feitos de seu letrista, Fernando Brant, condensando o forte signo dos 'peixes' com o jugo verde da ditadura e da já poderosa presença da televisão, amarrando vários dos interesses fundamentais do credo, ou do ethos, do Clube , entre eles o elo redentor da amizade, o amargor da situação política, e as metáforas de longo alcance, o que permitiu que não se reduzissem àquele contexto histórico. 

A forma é exemplar : um estrilho que começa (e termina) a parte cantada, uma estrofe, um B, que leva de novo ao A e fecha com o estribilho, repetido para a improvisação vocal de Milton e um chorus clássico para improvisação jazzística. Extra-terrestre ! :)

Ficha técnica:
Mliton : Voz e violão
Toninho : guitarra
Wagner : piano e órgão
Nivaldo : sax
Robertinho : bateria
orquestração : Wagner Tiso 


MILAGRE DOS PEIXES

Eu vejo esses peixes e vou de coração
Eu vejo essas matas e vou de coração à natureza

Telas falam colorido de crianças coloridas
De um gênio televisor
E no andor de nossos novos santos
O sinal de velhos tempos
Morte, morte, morte ao amor

Eles não falam do mar e dos peixes
Nem deixam ver a moça, pura canção
Nem ver nascer a flor, nem ver nascer o sol
E eu apenas sou um a mais, um a mais
A falar dessa dor, a nossa dor

Desenhando nessas pedras
Tenho em mim todas as cores
Quando falo coisas reais
E no silêncio dessa natureza
Eu que amo meus amigos
Livre, quero poder dizer

Eu vejo esses peixes e dou de coração


--##--

A vigésima terceira é PEDRA DA LUA, de Toninho Horta e do saudoso poeta e letrista Cacaso. Toninho é este artista impressionante e expressionista da harmonia, e nessa canção ele já inicia o discurso com um acorde altamente dissonante , um alterado com a seguinte cifra : E7M(b10), segundo a nomenclatura do mestre mundial em teoria da harmonia, o brasileiro Fábio Fabio Adour

O que é mais fascinante é como Toninho consegue dar sequência lógica funcional a acordes aparentemente "irracionais", e a metáfora da pedra da lua converge perfeitamente à estranheza de alguns acordes. A música acaba por se revelar como uma colcha de retalhos de fragmentos de memórias, e a mãe é a figura central. A infância é mais uma vez resgatada com imagens aparentemente desconexas , pequenos jogos de palavras com múltiplas ressifignações (lembrei desse termo vendo a entrevista do Gil no Jô !), e a pedra da lua, a mais enigmática... 

A forma, que, enredando sutilmente o fim de uma estrofe com o início de outra, proporciona um aspecto cíclico, faz com que tenhamos mais uma vez , tirando a introdução vamp nesse acorde de Mi alterado já referido acima, apenas uma seção, um A repetido , enredado e diferido, mas não um B contrastante. Talvez, do ponto de vista da estrutura formal, a "lição" mais clara da apreciação da obra do Clube seja essa sinteticidade que permite as maiores aventuras harmônico - melódico - rítmicas sem que a fruição da canção se perca num hermetismo, numa música para músicos. 

Essa relação equilibrada com procedimentos arquetípicos da música popular no fim das contas aparece muito sob o aspecto da forma. Aqui, por exemplo, temos essa seção principal da música com 12 compassos, o que é um número presente , por exemplo, no blues ... temos também em comum esse clima melancólico, profundo, perene que as pedras pontudas dos acordes nos arranham os ouvidos e corações...

PEDRA DA LUA

Dia, mania

Tarde covarde, noite açoite
Minha mãe calma e serena
Com seu sorriso inseguro
Toda vestida de branco
Hoje parece mentira
Hoje parece verdade
Menino levante cedo
Menino não chegue tarde
Dia folia, tarde covarde
Minha mãe no seu piano
Morrendo dentro da tarde
Com seu sorriso mais puro
Toda vestida de branco
Velando os meus passos
Velando os meus tropeços
Menino não morra cedo
Menino não chegue tarde
Dia mania... 


--##--


A vigésima-quarta da nossa lista é PAIXÃO E FÉ, de Tavinho Moura e Fernando Brant. Esse clássico que toca todo dia na Rádio Inconfidência às 6 da tarde (ou pelo menos tocava) celebra as raízes religiosas da cultura interiorana mineira, evocando as procissões, os cultos católicos entranhados na alma alterosa. 

Tavinho, com sua harmonia arrojada de acordes perfeitos, e métrica irregular, sai de lá maior , e rapidamente para mi maior, para desembocar em sol maior no refrão. Essas constantes modulações soam como degraus ascendentes frente à revelação espiritual da fé e da paixão. A agonia fica por conta de súbitos empréstimos modais que se resolvem via cromatismos ascendentes heterodoxos. 

Milton a gravou na super-produção do disco Clube da Esquina 2, onde ele experimentou particularmente o recurso de sua própria voz dobrada (aqui alternando entre intervalos de terças e oitavas), enfatizando aquele aspecto místico - religioso do seu canto. 

Beto Guedes estrela no seu virtuoso bandolim e os Canarinhos de Petrópolis fazem o contraponto angelical dessa canção de louvor à Fé e à Paixão. Clássico Imortal, e um exemplo de como a música pode abordar a religiosidade cristã sem aquele pedantismo evangélico que tanto caracteriza o gênero gospel .

PAIXÃO E FÉ

Já bate o sino, bate na catedral

E o som penetra todos os portais
A igreja está chamando seus fiéis
Para rezar por seu Senhor
Para cantar a ressureição

E sai o povo pelas ruas a cobrir

De areia e flores as pedras do chão
Nas varandas vejo as moças e os lençóis
Enquanto passa a procissão
Louvando as coisas da fé

Velejar, velejei

No mar do Senhor
Lá eu vi a fé e a paixão
Lá eu vi a agonia da barca dos homens

Já bate o sino, bate no coração

E o povo põe de lado a sua dor
Pelas ruas capistranas de toda cor
Esquece a sua paixão
Para viver a do Senhor


 

John Lennon hoje agora e sempre

Esses dias à volta com perdas do quilate de Oscar Niemeyer e Dave Brubeck, é inevitável pensar no sentido cultural que guarda o procedimento da homenagem, dentro da seara maior da memória social. A morte, lógico, é assunto inescapável para o historiador, pois está ali como componente indissociável do Tempo, matéria-prima de seu ofício. Nos estudos sobre museologia e patrimônio, parte predominante de minhas atuais pesquisas, muitas discussões giram justamente em torno das formas com que a sociedade intenta, simbólica e materialmente, enfrentar a morte enquanto fenômeno culturalmente percebido. Desse desejo brotam os mausoléus, epitáfios, necrológios, obituários, estátuas e monumentos para imortalizar, tombamentos de casas onde residiram aqueles que devem ser lembrados, por vezes transformadas em museus, memoriais e afins. Certa vez ganhei do pai de um grande amigo que visitara Nova York uma foto do mosaico em pedra portuguesa da calçada do Central Park que é parte de um memorial dedicado a John Lennon, um dos motes dessa postagem de hoje. Assim as pessoas, no intuito de lembrar quem partiu, e neste processo procurar definir coletivamente o que deve compor essa lembrança, modificam o espaço da cidade, escrevem longos textos ou pequenas mensagens, marcam o mundo de forma a denotar esse traço específico da passagem do tempo. . Um ótima análise desse fenômeno está em The past is a foreing country, de David Lowenthal, obra de grande erudição que ando tentando ler em meio à labuta rotineira de final de semestre. Meu projeto de pesquisa Patrimônio urbano e música popular aborda o assunto, ao tratar de lugares como Strawberry Field e Graceland




Dentre as muitas práticas dedicadas a promover a rememoração dos que passaram, as homenagens musicais são das mais poderosas, especialmente quando feitas de modo a transcender o contexto específico do falecimento do homenageado e de alguma forma possibilitar de maneira mais intensa a vinculação entre o passado da perda e o presente do ato de lembrar, estabelecendo um elo de sentido e beleza que se desprende da morte em si, e na passagem do lamento à celebração, permitem atualizar o significado da presença do homenageado no mundo e na vida de quem as ouve. esse modo, homenageio todos esses que deixaram sua marca e perduraram enquanto houver que delas fale ou ouça, através de canções feitas para Lennon.

--\\//--

 Estamos em 2014 e achei por bem atualizar essa postagem. O projeto que mencionei anteriormente caminhou um bocado, já teve parte de seus resultados apresentados em eventos acadêmicos, bolsistas que se envolveram, relatórios parciais, pesquisas em campo. Acabei de receber a aprovação do CNPq para continuá-lo, e interpreto esse apoio como reconhecimento ao trabalho que vem sendo realizado. Em breve trarei mais informações e postagens de alguns dos resultados aqui no blog.

Por fim, achei que uma homenagem a Lennon merecia ser complementada com canções. Me dei conta, numa rápida comparação entre as que foram compostas por seus irmãos de jornada, como Harrison (All those years ago) e McCartney (Here today) expressam visões complementares de seu amigo. All those years ago remete ao Lennon do mundo, num tom de tributo e até acerto de contas do presente com o passado, profundamente honesto como era próprio do George, apontando para a vileza com que Lennon foi por vezes tratado ("While they treated you like a dog"; "And you were the one they backed up to the wall", etc...) e fugindo de uma interpretação rósea da trajetória do companheiro. Here today fala de dentro, da intimidade de parceiros de uma vida, e é para aí que converge o exercício de rememoração de Paul, a partir do mote da constatação da presença/ausência de John. Também aqui há o exercício de uma franqueza, no reconhecimento do que era diferença entre os dois ("You'd probably laugh and say that we were worlds apart"), distância que era superada pelo afeto. 
Mas as duas canções coincidem na forma como apresentam a enunciação, pois nas duas o eu lírico dirigi-se diretamente a Lennon, produzindo um diálogo com o homenageado - ou mais efetivamente, com esse destinatário que é produzido no gesto mesmo da rememoração. Se Harrison insere a voz de Lennon por meio de referências a suas canções (All you need is love, Imagine), McCartney deduz das lembranças frases que poderiam sair de sua boca "If you were here today". Os arranjos das duas gravações, por seu turno, são contrastantes e correspondem ao quadro que propus inicialmente. O de Here today é intimista, centrado no confessional amálgama de voz e violão de Paul, acompanhado delicadamente pelo quarteto de cordas (remissão inevitável a Yesterday). Já All those years ago traz uma arranjo de banda, meio jazzy, até aliviando no clima alguma aspereza que a letra traz, com o detalhe de trazer Ringo na bateria e Paul, junto com Linda e Denny Laine, nos backing vocals. Dois belos tributos a alguém que deixou sua marca no mundo e nas pessoas.




6 de dezembro de 2012

JazzMan!: Dave Brubeck, o legado de um imortal

JazzMan!: Dave Brubeck, o legado de um imortal: Por Leonardo Alcântara (JazzMan!) Falar de morte nunca foi muito fácil para a maioria das pessoas, sobretudo quando perdemos pessoas t...