Cerejas

Silêncio

A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.

11 de março de 2018

O esmero não tem classe

O equilíbrio entre o ensaio de ocasião e o estudo de fundo é precário. Escrever neste blog tem sido para mim uma forma de exercitá-lo, desde sempre. Sem dúvida ainda não alcancei o ponto que idealizo, mas tem havido um trânsito interessante, com textos que nascem aqui amadurecendo e se tornando parte de reflexões mais delongadas, que tenho apresentado em eventos ou mesmo aproveitado na feitura de artigos, como no que recentemente publiquei em parceria com o amigo crítico musical, blogueiro de mão cheia e profundo conhecedor da música popular brasileira, Túlio Ceci Villaça, tratando do disco Todo mundo é bom (2016), do Coletivo Chama [aqui]. 

Neste último sábado tivemos, em horários praticamente simultâneos, dois lançamentos de artistas da mais alta estirpe do cenário musical dessas Minas, o que obviamente é dito sem desconsiderar a dimensão nacional e universal de seus trabalhos. Falo de "Titane canta Elomar na estrada das areias de ouro" no Palácio das Artes e "O anjo na varanda", de Tavinho Moura, no no Bar do Clube da Esquina, ambos em Belo Horizonte. Num daqueles dias em que a gente gostaria de se dividir em dois, compareci ao belíssimo show de Titane e não pude estar no de Tavinho, um lançamento de grande importância. O que já saquei do disco achei de alto gabarito, aliás falar isso do trabalho de Tavinho Moura é chover no molhado.






Aliás, para não ficar redundante, cito as resenhas feitas por meus parceiros Makely Ka para o disco de Titane e Pablo Castro para o show e disco de Tavinho, ambas disponíveis na página de Facebook deste mesmo blog. Obviamente, sugiro que aproveitem o ensejo para conhecer o trabalho de ambos, cuja qualidade os leitores que ainda não conhecem facilmente constatarão. Vamos a elas:

"A proposta de gravar um álbum com a obra do compositor preenche uma lacuna no nosso cancioneiro e se justifica pelo ineditismo do registro de um conjunto de suas canções com forte herança ibérica numa voz feminina de tradição popular. Na linhagem trovadoresca que remete aos provençais e galego-portugueses, Titane estabelece um arco atemporal atualizando a força ancestral dessa obra contemporânea no universo cancional brasileiro. A obra de Elomar é um portal entre dois universos, dois mundos distintos, uma fenda no espaço-tempo para penetrar em um imaginário mítico-poético atemporal. A localização geográfica habitada por seus personagens pode ser visualizada facilmente nos mapas, na divisa entre o norte de Minas e o sudeste da Bahia, mas através do prisma elomariano tudo parece transmudado e se desvela um outro universo.
Titane por sua vez sempre pautou sua carreira pelas escolhas rigorosas, do repertório aos arranjos, tudo sempre foi feito de forma a desafiar os limites de sua interpretação, sustentada por uma voz afiada como lâmina. Seu caminho até aqui é único e seus passos sempre foram firmes a ponto de transformá-la numa das mais importantes intérpretes brasileiras. Ela agora se embrenha nas estradas das areias de ouro, no sertão profundo, provavelmente um de seus maiores desafios, trazendo de sua viagem ecos de outrora, visagens do futuro, regalos do presente.
Titane, em trinta anos de carreira ainda não havia se dedicado a um único compositor. Da mesma forma não há registro fonográfico de outra cantora que tenha realizado um trabalho a partir de um conjunto de canções selecionadas da obra de Elomar. É um encontro especial que celebra outros encontros.
Entre eles, o encontro de Titane e Hudson Lacerda, violonista de grande precisão técnica, compositor erudito impregnado pela música popular brasileira, Hudson é um dos responsáveis pela transcrição de partituras do rigoroso Cancioneiro de Elomar Figueira Mello, obra fundamental de registro com um recorte específico e imprescindível da produção elomariana.
Celebra ainda o encontro do erudito com o popular em uma perspectiva subliminar ao optar por um formato acústico que remete tanto à sofisticação das formações camerísticas quanto à simplicidade de um recital de música popular, destacando a arquitetura dos arranjos já intrínsecos às composições e valorizando a imponência da voz em estado bruto.
Cruzando referências dos negros trazidos para trabalhar no garimpo do ouro e do diamante no Sudeste com a herança hibérica disseminada pelos europeus no Nordeste brasileiro, o encontro da cantora mineira da cidade de Oliveira e do compositor baiano de Vitória da Conquista promove uma aproximação de universos diferentes mas complementares, do ancestral com o contemporâneo, do sertão com o cerrado." Por Makely Ka
Sobre o show em si, acrescento que a performance segura de Titane, sempre em contato direto com a terra e encantando o público com a presença cênica e a força de sua voz, completou-se com a poderosa inserção de trecho do Dom Quixote de Cervantes tratando da condição feminina, como a própria cantora explica nessa boa matéria do Estado de Minas. O desempenho dos músicos que lha ladearam no palco foi impecável, e ela gentilmente reservou a cada um uma apresentação especial, mais que devida. Foram eles meu Hudson Lacerda (violão)e André Siqueira(bouzouki), meu querido parceiro Kristoff Silva (diretor musical do álbum, que cantou lindamente e percutiu delicadamente marimba), Aloízio Horta (contrabaixo acústico) e Toninho Ferragutti (acordeom). Nesta apresentação no Programa Sr Brasil é possível ter uma pequena provinha:



O mestre Tavinho Moura lançou mais um disco ontem, O Anjo na Varanda, modestamente e discretamente no Bar do Clube da Esquina. Sua obra parece marcenaria musical. Ele faz canções com um frescor, aparentemente sem nenhuma ideia pré-concebida sobre o que deveria ser uma canção, que tipo de letra e forma e mesmo harmonia deve ter uma canção. Ele faz canções como objetos sensíveis, como móveis, quadros, cadeiras, mas nada funcionais , apenas objetos nutridos de uma integridade de uma originalidade acachapantes.
O seu canto é rigorosamente atado à melhor prosódia possível, um cuidado metódico. É sempre notável como, em comparação com versões de suas canções na voz de Beto Guedes, um cantor mais animado e emocionado, Tavinho imprime uma sobriedade, um certo comedimento, como para que evitar que a música se superponha à palavra.
Acompanhado pelo insubstituível Beto Lopes , com participações vocais especialíssimas de Mariana Brant, Bárbara Barcellos e Amaranto, Tavinho Moura fez um show bonito, mas o que interessa em sua apresentações é a sua obra, antes de mais nada : trata-se de um criador talhado, mas com temperamento de artesão , com uma profundidade e uma convicção que não dá espaço para qualquer tipo de exagero ou afetação.
Eu aconselho vocês ouvirem esse disco recém-lançado, mas também toda a obra desse compositor extremamente original que temos. Tavinho é gênio. Por Pablo Castro
Do mesmo modo, para completar a apreciação, encaminho aqui um belo texto de apresentação escrito pelo próprio Tavinho e uma pequena provinha.





Para além dos evidentes laços geográficos, que demonstram a incontestável pujança da música popular feita em nosso estado, no contexto nacional e internacional - e deixo a provocação: vejamos a frequência com que ambos os discos serão lembrados naquelas famigeradas listas de melhores ao final deste 2018 - o que quero ressaltar é essa qualidade compartilhada em ambos e afirmada em tantas obras que integram a história de nossa música popular: o esmero, o apuro, o rebuscamento, a elaboração que perpassa esse grande oceano de canções, arranjos, gravações, interpretações e apresentações. Dentre os grandes fenômenos da história da cultura no século XX certamente poderemos posicionar a explosão das distinções apriorísticas entre as hierarquias socialmente construídas para criar, reproduzir, circular e ouvir música. Não resta dúvida de que o desafio às fronteiras previamente estabelecidas, valor estético consagrado na modernidade, teve nos músicos populares alguns de seus melhores protagonistas (aqui não resisto a uma ponte com a trajetória de Piazzolla, cuja biografia foi alvo de uma recente postagem, mas remeto-me ainda à resenha que escrevi do livro O triunfo da música, de Tim Blanning). Mas se o liquidificador energizado pela indústria fonográfica tritura ingredientes e põe no balcão tantos milkshakes cuja variação de sabor mal esconde sua semelhança, não a livra, definitivamente, das contradições que são necessárias admitir para que uma certa magia ponha em movimento o câmbio dos gostos. Seu sabor de mercadoria não pode descartar a insistência de outros códigos concomitantes, de outras ordens que não lhe são completamente coincidentes, como as que regem o campo das artes (ver Artistas da fome e o valor da bolacha) ou o do trabalho do artesão, com seus modos de fazer, estética e esmero. É um lugar comum dizer que a música popular historicamente foi definitivamente imbricada à fonografia. Mas como historiador tenho o cuidado de notar que a primeira antecede à segunda, e de que na receita que a compõe há traços de fazeres musicais anteriores e contrastantes à própria modernidade, ao capitalismo e seus valores. Há gente que esquece disso. E o esquecimento é um dos grandes males de nosso tempo. Aparece, por exemplo, quando se constitui uma percepção binária sobre o objeto música, através de associações mecânicas entre os sujeitos em seus lugares sociais de origem e a lógica de sua produção e consumo. Criou-se uma espécie de fronteira artificial, felizmente desconhecida pela maioria dos músicos, mas obviamente muito conveniente para a vida dos críticos e também dos tais "influenciadores de rede social", cujas opiniões são tão estereotipadas quanto a do um fantasioso bunker  de defensores do bom gosto que pretendem explodir, ignorando que tal já foi feito ao longo do próprio século XX. Uma boa mostra disso se encontra nesta postagem recente, crítica de uma crítica ao último single da cantora Marina Lima. A revolta extemporânea contra o elitismo que pauta tais críticos e de modo geral nuns tantos autointitulados ativistas da cultura, ao desconhecer as rupturas e aproximações materializadas claramente na obra de um Elomar, de um Tavinho, e de resto  um sem número de criadores que povoam a grande galáxia de nossa música popular, aparenta ser inclusiva e tolerante, mas é finalmente conformista, paternalista e excludente, pois sua consequência é subestimar as possibilidades de fruição e elaboração daqueles que supõe defender, além de manter canais fechados onde deveria querer abri-los, como eu já havia considerado nessa postagem em comentário a um texto do Hermano Vianna. Este é um esforço em andamento para superar generalizações e relativizações, e nesse sentido as apreciações dos trabalhos de Titane e Tavinho Moura me pareceram ótimos catalizadores de um raciocínio que ainda preciso burilar, mas que essencialmente trata de reconhecer que o esmero não tem classe, o que não equivale nem de longe a desconsiderar a importância da classe como categoria para pensar sobre estética e criação - o mesmo para qualquer outra categoria chave como gênero, etnia, espaço, campo, tempo, etc. - mas sim entender que a limite para sua influência, como apontei anteriormente em A origem de classe na música popular não é o seu ponto final. Na verdade, me parece estratégico para a compreensão da vitalidade das culturas populares reconhecer que o esmero não é um elemento estranho a elas, incorporado num enxerto de erudição, de valores elitistas. É mais lógico reconhecer que ela tem suas próprias maestrias e sofisticações, através das quais muitas pontes foram construídas como podemos constatar através de estudos tão diversos como os de Ariano Suassuna ou de Peter Burke. Eventualmente imperceptíveis ao ouvido academicista de anteontem, mas que paradoxalmente hoje estão inaudíveis para a crítica pós-modernosa. Se queremos entender as hibridações e trânsitos que de fato foram responsáveis pela demolição de barreiras culturais e consequente polinização mútua de tantas expressões que nos movem, é preciso superar essa audição folclorista invertida, que na prática expropria todo o oceano de variedade e qualidades de ouvintes que são convencidos que a poça d'água que lhes é oferecida lhes basta porque é sua, quando na verdade é deles tanto o mar quanto o sertão.

5 de março de 2018

Na estante: Le Grand Tango

Meu deleite do momento é essa magistral biografia de Piazzolla, que adquiri numa banca de rua na feira cultural no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, no final do ano passado. Nos dias em que estive por lá, ir ouvindo a música enquanto lia a biografia em pleno centro de Buenos Aires dava uma sensação ímpar a tudo. Le Grand Tango: the life and music of Astor Piazzolla, escrito pela argentina María Susana Azzi (da Academia Nacional de Tango e da Fundação Piazzolla)  e pelo estadunidense Simon Collier (latinoamericanista e professor da Universidade Vanderbilt). Pesquisa de fôlego (5 anos), entrevistas, material de arquivo, texto agradável, análises decentes, sem medo de usar termos técnicos mas conseguindo dar a ideia a qualquer leigo, detalhes curiosos - por exemplo, Piazzolla quando adolescente conheceu Gardel em Nova Iorque e quase esteve na sua trupe como ajudante na viagem à Colômbia que matou o grande ídolo argentino. Que vida movimentada e que figura foi Piazzolla. Ler uma biografia dessa modifica totalmente a forma de ouvir a música do artista biografado. 







"Quando você se casa com a música , ela é seu amor para sempre, e você vai para o túmulo com ela". Piazzolla!

P.S.
Um dos pontos altos do livro é a passagem de Piazzolla pelo Brasil em 1972, quando Nana e Dori Caymmi o levaram para ver o show de Milton Nascimento no Rio - à época do disco Clube da Esquina. Na sequência o argentino e seu conjunto tocaram num espaço privado para uma plateia de músicos brasileiros que incluiu, além do trio já mencionado, Chico Buarque, Egberto Gismonti, Luiz Eça e outros. Após a reunião de depoimentos e casos dessa passagem, fica inclusive a sugestão dos autores para que se escreva um livro devotado às conexões de Piazzolla com a cena musical brasileira, reforçada pelo relato de um diálogo entre ele e Caetano, no qual ele indaga ao baiano porque não o tratam na Argentina como o Brasil lhe trata.

P.S. 2 - acrescento essa entrevista que traz vários assuntos tratados no livro e acabei de assistir por indicação do músico argentino Lisandro Massa. 

 

24 de fevereiro de 2018

Só os coxinhas ou provocação de supermercado?

Acabei de saber que a cantora Marina Lima está para lançar disco novo e soltou ontem para o público a primeira amostra deste trabalho, o funk Só os coxinhas, que assina junto com seu irmão e parceiro Antônio Cícero. Provavelmente eu teria deixado passar batido,não fosse pela crítica de Mauro Ferreira [completa, aqui]. Reputo Mauro com um dos poucos bons críticos musicais que estão aí na grande imprensa. Costumo gostar de seus textos , independente de concordar ou não, e muitas vezes concordo. Dessa vez não gostei nem concordei. Tem suas qualidades e fez o que se espera de uma crítica decente. Fui levado por ela a ouvir a faixa. E foi aí que a porca torceu o rabo, porque a propaganda me pareceu muito enganosa. Vamos ver se me explico.
Antes de qualquer coisa deixo bem claro ao meu leitor que não sou versado em boa parte do repertório do funk, um gênero que não me atrai e do qual conheço basicamente aquilo que circula pelas cadeias midiáticas ou que eventualmente sou levado a ouvir na condição de pesquisador. Estarei a partir daí sob a exigência de não deixar qualquer antipatia implícita ou explícita nublar o teor dos meus argumentos. Há portanto pontos cegos sobre os quais eventualmente algum leitor poderá esclarecer e até encontrar por eles inconsistências no que vem abaixo. Enfatizo também que isso aqui não é um tribunal de julgamento de um gênero musical como um todo, e sim uma simultânea crítica da crítica e crítica do objeto da crítica, portanto, dessa canção especificamente.
Começo do começo, ou seja, do título da crítica: Marina faz história ao reproduzir códigos e linguajar do funk com o imortal Cicero. Achei extremamente exagerado. Como historiador eu poderia adentrar numa enorme digressão sobre o significado modernamente fetichista da expressão "fazer história". Tentarei evitá-la. Trata-se um clichê conveniente que serve para rapidamente afirmar a importância de algo a partir da percepção linear sobre o tempo. Vou me abster de elencar toda a historiografia do século XX dedicada a mostrar que qualquer um de nós, notório ou anônimo, "faz história". A expressão tem uso corrente e fácil quando se trata de um objeto estético qualquer, e nesse sentido fazer história seria inovar, fazer o que ainda não foi feito, surpreender. Ora, justo o primeiro parágrafo do texto contradiz seu título. Nada mais banal do que 'n' artistas brasileiros que não pertencem ao universo imediato do funk praticarem o diálogo com o mesmo. Não tenho receio em cravar, assim, que esse funk não 'faz história' no sentido em que o Mauro reivindica. Nem mesmo pelo argumento mais que furado de assinalar a erudição do "imortal" Antonio Cicero. Ora, antes de mais nada é curioso reivindicar numa crítica que pretende questionar uma "elite cultural" [as viúvas da MPB, assunto que ainda retomarei] tomando como crivo uma instância caquética (ABL) que esta mesma elite não tem o costume de reconhecer. Acredito que não preciso provar que Chico Buarque ou Caetano Veloso - pra ficar em dois grandes nomes do panteão da MPB - teriam méritos suficientes para figurar entre 'imortais' se fosse o caso, os dois já buliram com o funk e nem por isso fizeram história. Também não causa choque nenhum o encontro entre a Academia e o Funk a essa altura. Há teses e dissertações de sobra sobre o tema, e já faz tempo que a Popuzuda virou 'professora' de filosofia. Marina, por outro lado, não faz nada de novo, nada "de/mais" nesse flerte, afinal sua carreira navega nas ondas do pop desde sempre, como o próprio texto mostra muito bem. Não vai aqui nenhuma intenção de jogá-la na vala comum - onde não está - mas simplesmente de relativizar o peso da sofisticação (eu nem colocaria aspas) no todo de sua obra. Trata-se de uma crítica, e não de "jogar pedra". Aliás, sintomático que a resenha venha com esse contra-ataque preventivo. Numa retórica equivocada, pretende antecipar que a crítica que venha seja enquadrada como reação impertinente, careta. Careta é a tentativa de vedar a crítica a priori.


Entrando na gravação em si, parece acrescentar muito pouco à obra dela e também ao funk. Porque, me parece, é tão exterior, tão pouco orgânico quanto ao mundo do funk, que se apresenta como algo no meio do caminho. É ruim como funk e ruim como uma outra coisa que estivesse se apropriando do funk. Apesar da produção, de repente ter um timbre que lembra uma guitarra distorcida fazendo um 'prefixo' que em quase todas as ocasiões seria realizada através de um som mais 'eletrônico' que propriamente 'elétrico', de fato é uma emulação - é significativo que seja esse o termo empregado pelo Mauro Ferreira. Talvez toque mesmo nos bailes, provavelmente nas "baladinhas top" frequentadas predominantemente pelos coxinhas que ironiza, mas certamente não rivaliza com o poder de embalo e de detecção dos grandes pontos de tensão da existência contemporânea e do conflito social, como alguns funks efetivamente conseguem. A questão não tem muito a ver com 'vulgaridade', e sim com contundência. A interpretação dela, sem energia, cansada, só corrobora essa sensação. A letra é igualmente uma emulação do estilo falsamente infantil, com as rimas reiteradas em 'inho' a coloquialidade, a narrativa coreográfica em imperativos e explicitamente sexual, 'realista', mas a esta altura do campeonato, ingênua, educadíssima. "Pagar cofrinho" e "abaixar um pouquinho" não escandaliza ninguém. Não há uma aproximação antropológica ou pesquisa, por assim dizer, do que está em uso corrente. Tanto que eu, assumido desinformado em matéria das expressões que circulam nas quebradas, reconheço todas. Poeticamente, portanto, não há trabalho além da compilação de expressões que já caíram em desuso em vários funks correntes. Aliás, nada mais demonstrativo disso que a citação de "O baile todo" (2001) do Bonde do Tigrão e seu bordão mais consagrado, "só as cachorras".  Ironicamente "Só os coxinhas" chega a ser, musicalmente, um funk retrô. Se o intuito é chocar fica difícil de saber quem ficará chocado. Por outro lado, me parece que o efeito mais provável será bem diferente, agradar aos ouvidos de uma certa fatia de ouvintes de classe média que já conhece o trabalho da Marina e se regozijará com sua investida no gênero, ao qual estão mais que acostumados, e a provocação direcionada aos coxinhas, os quais provavelmente não darão a menor bola. Ou dançarão como se a letra não tivesse importância (uma possibilidade real quando se trata de música dançante), ou não chegarão a ouvi-la porque pelas razões expostas acima pode ser que o vaticínio de que venha a ser um hit não se confirme. Espero até estar errado mas parece improvável que essa investida angarie novos fãs para Marina. Temo que o tiro saia até pela culatra, ou, quando muito, que o revólver esteja sem balas. Não fica claro pra mim o que acrescentam dois artista do calibre de Marina e Antônio Cícero (nisso corroboro a apreciação do autor da crítica) com "Só os coxinhas", no final das quantas. A provocação é inócua quanto ao seu objetivo. 
Como também dispensável, voltando à crítica, o queixume sobre uma suposta "elite cultural" que pretende impor os parâmetros de qualidade da MPB à toda apreciação musical. Além de lugar comum, acho desnecessária por dois motivos. O primeiro é que essa suposta elite, se existe, não apita nada, não tem influência sensível no que toca nas grandes mídias e portais das redes, não orienta a produção mais do que no alcance do pequeno nicho que lhe presta atenção. Estou certo que a Marina não precisa se preocupar em nada com supostos detratores, desempoderados que são. Segundo, e muito mais sério, é um desserviço apontar as baterias a quem já perdeu hegemonia no mercado (e daí?) e nunca pretendeu ser o único parâmetro. Atribuir a pecha de 'viúvas' a seus apreciadores e praticantes, nos quais me incluo duplamente e sem o menor constrangimento, é um grande equívoco. A MPB está vivíssima, provavelmente mais como bichos livres nas matas do Brasil do que como animais de zoológico. Acho uma tremenda falta de compreensão sobre o que representa a MPB na história da nossa música popular esse tipo de comentário. Como escrevi nas notas a O pós-futuro do pós-brasil, em esforço combinado com o crítico Túlio Ceci Villaça, nos anos 1970 até a subversiva e includente Tropicália "passou de supernova a anã branca, foi inevitavelmente atraída pelo campo gravitacional da galáxia MPB em expansão"[aqui o artigo completo]. Diante da responsabilidade do crítico com a história e com a formação dos ouvintes me sinto obrigado a ressaltar que Chico e Caetano, "imortais" da MPB, chegaram antes de Marina e Antonio Cícero.Seria mais adequado convidar os interessados em funk em procurar saber disso. Não acho que funkeiros tenham que pedir a bênção nem nada do gênero. É até normal que rejeitem quem vem antes, eis aí uma das mais manjadas estratégias de aparecer no campo da arte, tanto quanto se afirmar como continuador, e, desde a modernidade, bem mais eficaz. Mas pode ser um trabalho válido da crítica justamente questionar toda forma de "guetificação" da criação e da audição, e não só, num indisfarçável paternalismo, a que supostamente é praticada pela tal "elite cultural". Identifico em muitos músicos que reverenciam a MPB uma atitude bem mais aberta ao que está fora do seu escopo do que em outros gêneros. Bater nela com esse pau parece muito clichê, e lamentavelmente ganha o aplauso fácil de desavisados que recaem, eles sim, num binarismo condenável.
Numa uma última volta crítica, digamos que eu não esteja percebendo (e nesse sentido o Mauro também não teria percebido) que tudo isso, como a coxinha, tem uma outra massa, envolta na capa. Haveria aí uma crítica à massificação, à fórmula pronta, ao entupir o ouvinte com os clichês? A provocação ao consumo fácil? Talvez a obviedade ululante da letra permitisse essa leitura. Mas aí não fazem sentido as menções aos elogios de Marina direcionados a Anitta, por exemplo. Parece mais uma tentativa sincera, e mal sucedida, de produzir um funk irônico em relação aos coxinhas, sem caninos suficientes para dar a dentada, tornando-se assim uma bem comportada provocação de supermercado.




12 de fevereiro de 2018

Está Extinta a Escravidão? Samba e História na Sapucaí


Eu tinha sacado alguns sambas-enredo e sentido que o desfile das escolas do Rio desse ano seria diferente, de enfrentamento. Se de um lado não cabe a desmedida visão de ver aí uma redenção infalível que vá imediatamente mudar o cenário do nosso dia a dia, também não se pode menosprezar a força simbólica que tais manifestações retém. 

Vi o início do desfile da Paraíso do Tuiuti e senti firmeza. Mas Morfeu foi mais forte. Agora estou assistindo ao VT. Tá dando gosto. Descubro que o colega historiador Léo Morais foi assistente do carnavalesco Jack Vasconcelos e depois destaque como 'Presidente Vampiro'. Para uma síntese, ver a matéria, aqui, e as fotos

Tantas vezes houve sambas com enredos grandiloquentes e pitorescos, que motivaram o irônico apelido se 'samba do criolo doido' [já fiz uma postagem tratando do assunto, aqui], mas com o tempo uma maior acuidade historiográfica começou a se fazer presente. Eis aí um belo exemplo, um samba-enredo competente, um desfile de encher os olhos e ainda dar o recado. Eu não sou estudioso do carnaval e nem crítico de desfile de escola de samba, mas dentro das minhas limitações me pareceu tudo muito coeso, os temas das alas, a tradução visual do enredo, a força musical do samba puxado pelo trio Nino do Milênio, Celsinho Moddy e Grazi Brasil, que como acabei de apurar tem entre seus compositores Moacyr Luz, grande craque [aliás, covardemente assaltado antes do desfile, aqui]. Vale dar uma olhada no depoimento dos compositores [aqui] . Selecionei um trecho do que disse um deles, Aníbal Leonardo:

"A escravidão é a forma de opressão mais vil que existe, que vem desde as formas mais antigas de organização da sociedade. No caso do Brasil, isso se reflete nas enormes desigualdades que vivemos até hoje, e por isso o samba bate tão forte no seio do nosso povo, pois a exploração abusiva do homem pelo homem se dá inclusive fora da escravidão".

Acho importante ainda trazer impressões dos componentes da escola sobre o samba, que nitidamente empolgou a todos [aqui]. Ariolana Conceição, moradora da comunidade do Tuiuti e membro da velha guarda da escola, disse que: 

– O samba é maravilhoso. Só tenho ouvido elogios do nosso samba-enredo. As pessoas dizem que é o melhor, e é mesmo! O melhor é que ele exalta a nossa raça, as nossas origens conta a nossa história, do negro e do Brasil. Retrata a Africa em poesia, tem ritmo, tem balanço, tem melodia e tem emoção acima de tudo. Ficará para história como outros sambas-enredos.  


Lembro da história da ave atirar seus filhotes em queda, para eles aprenderem a voar. Talvez entre as fábulas colhidas por Da Vinci, narrada no primeiro livro que definitivamente amei na vida.Esse pensamento escapa (ou decola?) agora enquanto penso no enredo da Paraíso (olha pra cima, de novo) do Tuiuti (um pássaro!). Será um grande desconhecimento da história dos sambas-enredo se agora alguém se dá conta de seu teor político, seu engajamento nas questões mais urgentes e também nos dilemas mais profundos da nossa existência enquanto brasileiros. Não, não está aí novidade alguma.
Então onde está o voo do Tuiuti?
Me arrisco a considerar que na forma com que articulou o conhecimento do passado com a interpretação do presente, e simultaneamente a tradição de sambas-enredo com alguma inovação. O samba parece que deu nó em pingo d'água, porque consegue unir os macetes formais costumeiros do samba-enredo, como os refrões poderosos, as rimas internas, e o inventário do vocabulário e do imaginário afro-brasileiros com sacadas atípicas que lhe dão ares contemporâneos, como o elaborado jogo poético com as cores, imagens rebuscadas como a da lua atordoada, mas a sofisticação é dosada de maneira a não torná-lo pedante. Ao fazer a leitura crítica do fenômeno da escravidão, incluindo aí a sua abolição no Brasil, consegue dialogar com a tradição dos enredos sobre a História do país mas dá um salto qualitativo porque está afinado a descobertas historiográficas que costumam passar longe da avenida uma vez que dificultam o ato de exaltar. Ao descortinar o engodo da Abolição, tão celebrada em tantos carnavais, o enredo efetiva o laço com o presente enunciado no título em forma de pergunta. Irresistível a analogia que tenho a fazer: eis aí um Samba-Problema, indo ao encontro do brado metodológico da Escola dos Annales. Certamente os historiadores professores levarão esse samba e o desfile para as salas de aula, do fundamental ao superior, e terão aí um rico material para discutir o tema da escravidão, sua historiografia e seus sentidos no tempo presente. É digno de nota que a Escola conseguiu esse feito sem recair em anacronismos equivocados, ao apresentar uma leitura crítica sob a luz de conhecimento apurado sobre o fenômeno da escravidão para pensar sobre as condições de trabalho ao longo da História e a atualidade do "cativeiro social". No documento chamado Livro Abre-Alas (que é uma espécie de catálogo com os projetos dos desfiles das escolas) consta a bibliografia utilizada pelo carnavalesco e seus auxiliares [aqui].
Ao pensar a escravidão em sua historicidade, ainda, o enredo desdobra o que a letra do samba só insinua, dando perspectiva para refletirmos sobre a exploração do trabalho humano em diferentes contextos. Talvez haja inclusive um eco, intuitivo ou não, da dialética hegeliana do senhor e do escravo, na constatação de que a vida lamenta por ambos. E aí, um trunfo quiçá escondido, o ás na manga, um zap no identitarismo, porque a interpelação não se dirige apenas aos negros escravizados historicamente no Brasil, mas aos escravizados de todas as cores, tempos e lugares, o "irmão de olho claro ou da Guiné", todos de "sangue avermelhado". Ao atualizar o sentido da luta contra a escravidão como luta de libertação de todas as formas de exploração do trabalho, o Tuiuti canta fora da gaiola do cativeiro social e alça voo diante do precipício.

O desfile



A letra do samba, de  Cláudio Russo / Anibal / Jurandir / Moacyr Luz / Zezé:

Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?
G.R.E.S Paraíso do Tuiuti

Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz

Eu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente

Ê Calunga, ê! Ê Calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro nem feitor

Amparo do Rosário ao negro benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor

E assim quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra bondade cruel

Meu Deus! Meu Deus!
Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social

Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação




31 de janeiro de 2018

1a. c/ 7a. A arte carnavalizada de Glauco Rodrigues

Assisti com muito interesse ao documentário "Glauco do Brasil", sobre a vida e obra do artista brasileiro Glauco Rodrigues. Permanece ainda relativamente inexplorada academicamente falando a relação entre a música popular e as artes plásticas, especialmente se excetuarmos o caso da Tropicália. Fiquei particularmente ligado no depoimento do João Bosco remontando às artes das capas de Caça à raposa, Galos de Briga e Comissão de Frente. Em sua fala ele chama atenção para a afinidade do trabalho do artista com o repertório que vinha construindo, especialmente em parceria com Aldir Blanc, a partir do conceito de carnavalização. 


Achei relevante esse apontamento para contrapor essa opção estética (na música popular e nas artes visuais) ao atual posicionamento sectário que vem sendo expresso através do entendimento raso do conceito de 'apropriação cultural'. Há uma relação entre essa diferença de concepções sobre a Cultura e a conjuntura social e política em que se apresentam. Nos anos 1960-70 havia a tentativa de imaginar um país e de gestar um projeto nacional, e nesse intuito recorria-se invariavelmente a alguma forma de mescla para embasar-se. A política e o debate cultural atuais tem gravitado em torno de outras formas de construção das identidades, por vezes supra e por vezes infra nacionais. Ocorre que muitas vezes essas formas reivindicam um grau extremo de pureza e separação, distanciando-se da possibilidade de traçar destinos comuns e visões de mundo compartilhadas. Me parece urgente retomar o fio da meada da brasilidade a partir das propostas estéticas e política desenhadas a partir do reconhecimento da hibridação cultural como nosso traço distintivo. 






Da apresentação oficial no You Tube:
"Glauco do Brasil é um documentário de 90 minutos, que retrata a vida e a obra do pintor Glauco Rodrigues. Gaúcho de Bagé, Rio Grande do Sul, Brasil, Glauco é considerado por teóricos, críticos e artistas nacionais e internacionais um dos principais pintores da Pop Art na América Latina. A trajetória de Glauco Rodrigues é retratada através de uma série de entrevistas, depoimentos, imagens de arquivo e captação de novas imagens dos cenários no qual Glauco Rodrigues vivenciou e se inspirou. O documentário possui entrevistas com artistas e intelectuais como: Nicolas Bourriaud, Ferreira Gullar, Gilberto Chateaubriand, João Bosco, Luis Fernando Veríssimo, Camilla Amado, Frederico Morais, entre outros."