Assisti hoje, dentro da excelente mostra de cinema nacional recente realizada no Cine Humberto Mauro, ao documentário "Estou me guardando para quando o carnaval chegar", dirigido por Marcelo Gomes [entrevista], certamente mais reconhecido por Cinema, aspirinas e urubus. A narrativa crua - mas não nua, exatamente - de Toritama, cidade de 40 mil habitantes no agreste pernambucano responsável por 20% da produção nacional de jeans, emanando da boca de seus protagonistas, ainda que pontuada por uma narração em off que vai descrevendo um retrato contrastante dessa 'china com um carnaval no meio' com aquela cidade pacata de interior de que o cineasta se lembra de ter visitado com o pai. O título, pinçado da canção de Chico que por sua vez foi trilha original para o filme de Cacá Diegues,Quando o carnaval chegar, de 1972 [aqui para ver o filme e aqui para o trecho com a canção]. O diretor também lança mão de outras citações e procedimento metanarrativos, como por exemplo interromper o fluxo da narrativa e dirigir-se ao espectador para discutir a sua própria construção, demonstrando como a alteração do som (quase todo o tempo um uso brilhante da banda sonora tomada pelo recorrente e ensurdecedor barulho de máquinas de costura e outros aparelhos usados nas facções, fabriquetas de fundo de quintal que dominam a paisagem urbana de Toritama - uma das traduções do tupi poderia ser "terra da felicidade"), ou do ângulo da filmagem. Não tenho um domínio do repertório de documentários brasileiros sobre a questão do trabalho, mas claro que foi inevitável uma lembrança de Ilha das flores, porém me parece que "Estou me guardando" teve o cuidado de ser menos didático, jornalístico ou panfletário, nos deixando cada vez mais atônitos ante a convicção empreendedorista da grande maioria dos moradores que narram diferentes versões do "toritaman way of life", que é sobretudo marcado pelo imediatismo total - daí o lance provocativo com o título e a canção - totalmente afinado com uma perspectiva ultraliberal. Tal realismo, sem tutela da fala dos trabalhadores autônomos que se tornaram escravos de sua própria versão agreste de meritocracia, pontuado aqui e ali com as tiradas e criatividade de um povo que faz do improviso seu modo de viver e expressar, torna "Estou me guardando" um retrato ainda mais acurado do Brasil de hoje que Bacurau. E muito menos palatável.
Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...]
Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida."
Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
21 de dezembro de 2019
2 de dezembro de 2019
Todos os malucos no mesmo galho
Quando a gente acha que já ouviu todo tipo de maluquice ser pronunciada por representantes do atual governo brasileiro, eis que o recém empossado presidente da Funarte, Dante Mantovani, revelou-se um contumaz distribuidor de asneiras e delírios através de um canal no You Tube [aqui a matéria da Folha sobre o assunto]. Não faz muito tempo, o ruminante da Virgínia, Orvalho de Cavalo [sic], andou espalhando o capim estragado que mastiga , afirmando que o filósofo (esse sim, ele não) Theodor Adorno teria escrito músicas dos Beatles. Mantovani tenta se igualar no besteirol, afirmando que
Não é que o Adorno tenha falado assim para os Beatles, ‘faça isso, faça
aquilo, faça a liberação das drogas’. O teórico desenvolve a teoria e o
agente vai lá e age”, diz. “Na esfera da música popular, vieram os
Beatles, para combater o capitalismo e implantar a maravilhosa sociedade
comunista.
Ecoou imediatamente para mim a paranoia do macartismo nos EUA ou da Ditadura Militar made in Brazil. Lembrou-me ainda do achaque de fanáticos religiosos aos Beatles nos anos 1960, especialmente intensos depois de Lennon ter declarado marotamente que eles eram "mais famosos que Jesus". As besteiras de então, como as que um certo reverendo Nobel distribuiu no livro Communism, Hypnotism and The Beatles (1965) são o tipo de lixo eternamente reciclável.
Esse ataque, que em outras circunstâncias seria até divertido, é testemunho da degradação intelectual e de caráter que tomou conta do governo federal e se manifesta progressivamente em todas as suas instâncias. A censura, a truculência, o aparelhamento e o enviesamento de políticas de incentivo agora são a regra nos órgãos de cultura. Essa sabotagem sistemática reflete uma escalada reacionária que compreende o campo da Cultura na esfera do Estado como alvo de disputa ideológica, plataforma do conservadorismo político, balcão de negócios sem qualquer critério de bem público e, simultaneamente, jamais tratá-lo como espaço público e de direito. Converte-a em uma espécie de arma política apropriada ilegitimamente para fustigar adversários, introduzir diversionismo e promover revisionismos de toda ordem. Enfim, há método nesse disparate, e é a partir disso que precisamos combatê-lo.
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29 de outubro de 2019
No estúdio com Thiakov - Hey Jude
Produzindo os Beatles- Hey Jude (Lennon/McCartney)
Depois de tanto terem explorado diversos campos harmônicos, cadências exóticas, ritmos de outras culturas, melodias que desafiam os ouvidos acostumados com a tranquilidade da meia-idade musical dos Beatles (entre 64 e 66), o conjunto retornaria aos signos tonais mais reconhecidos pela humanidade pós-J.S Bach e seu Cravo bem Temperado, uma escolha estética que priorizaria a emoção da interpretação em detrimento do cerebralismo celebrado por eles, em certa dose, e principalmente pelos seus contemporâneos do emergente rock-progressivo. Desde a temática da letra até a finalização da gravação, toda a canção está imbuída de sentimentos fortes, porém observados de um ponto de vista simplista e assim executados de maneira estoica.
Hey Jude veio a tornar-se a maior música pop a tocar nas rádios, desde então, e chegar ao primeiro lugar nas paradas (19 semanas no total e 9 no topo). Com seus mais de 7 minutos divididos em: 3 minutos de canção e mais de 4 de nanana (um mantra pós-viagem indiana, um capítulo à parte que mudou radicalmente a cabeça e o penteado dos garotos de Liverpool), a música inicialmente sofreu tentativas de corte de tempo pelas rádios, porém sucedeu tornar-se hit e ser enfiada goela abaixo dos DJs que insistiam em querer ficar somente com a primeira parte. O assunto era delicado e assim foi tratado por Paul. Era sobre a recente separação de John e Cynthia Lennon e dos sentimentos do protagonista, o filho do casal, Julian – o Jude. Foi um jeito encontrado pelo “tio” Macca para consolar o garoto frustrado com o divórcio dos pais. Olha Jude, não leve a mal, pegue uma canção e a faça melhor, se alguma hora você sentir a dor, olha Jude, desacelere, não carregue o mundo nos ombros. Enquanto escreviam a letra Paul conta que Lennon ficou por diversas vezes emocionado e nem se importou com a repetição da palavra “ombros” na música, coisa que evitavam.
É incrível o casamento da harmonia com as palavras. A primeira parte da canção é uma aula de harmonia para principiantes, enquanto o nanana já é para intermediários, com uma introdução ao modalismo. Na teoria básica de harmonia tonal temos fundamentalmente três sensações possíveis, que são as três funções principais: repouso (tônica), afastamento (sub-dominante) e tensão (dominante), e toda expansão harmônica se dá a partir desses três acordes. São o I, IV e V, sendo que, se estamos em Dó Maior, são: I-Dó, IV-Fá e V-Sol, mas como Hey Jude é em Fá Maior, transpomos as mesmas relações e temos: I-Fá, IV-Si bemol e V-Dó. Analisando a letra em conjunto com essas sensações tonais, chegamos em um assombroso esqueleto estético de arrepiar qualquer cancioneiro. Começa somente com o chamado de Paul com um “Hey” e já vem o acorde de repouso, a tônica em “Jude”, don´t make it “bad” – tensão com o V grau, take a sad song – ainda tensão, and make it “better” – repouso no I, “remember” – afastamento com o IV, to let her into your “heart” – repouso, then you can “start” – tensão, to make it “better” – repouso, “Hey Jude” – repouso, don´t be “afraid” – tensão, you are made go out and “get her” – repouso, the “minute” – afastamento, you let her under your “skin” – repouso, then you can “begin” – tensão, to make it “better” – repouso. No intermezzo, Paul expande a letra e a harmonia mas sem sair do campo tonal. O único momento onde a cor dos acordes muda é no final, o nanana, onde com apenas um acorde a mais – o Mi bemol, a música passa a ser modal, um mixolídio emocionante depois de minutos perfeitamente tonais, e sobretudo turbinada pelo naipe de metais que aparece só pra dar mais força a esse imenso CODA (um final diferente de todo o resto).
Destaque: [áudio da CBC radio com pessoas que participaram do coro no vídeo promocional]
Destaque: [áudio da CBC radio com pessoas que participaram do coro no vídeo promocional]
Após tamanhas loucuras composicionais experimentalistas, os Beatles estavam de volta num campo onde, aí sim, eram especialistas: a emoção bruta, gutural, simples e radical. Foi assim que ganharam o mundo em hits orgânicos numa roupagem que ainda não se tinha visto anteriormente. O piano é quase infantil, um jeito de tocar que tornou-se assinatura do quarteto e também da posterior carreira solo de cada um, que é tocar na mão direita o tempo forte respondido com o contratempo na mão esquerda ´- vide I am the walrus, Golden Slumbers, Imagine, Maybe I´m amazed, etc., mas é esse piano infantil que faz um truque que virou outra assinatura deles: na ponte que vai para a parte B, Paul canta “then you can start to make it better” e o piano faz uma caída melódica com a 8ª-7ª maior-7ª menor (que gera tensão) e isso foi ouvido por diversas vezes em gravações posteriores – vide Balada do louco dos Mutantes, que reconhece todas essas assinaturas e as homenageia com maestria e criatividade. Lennon toca um violão simples com os acordes básicos e uma batida desdobrada em colcheias, mas com uma pegada bem forte, priorizando o contratempo na subida da palheta, fazendo o violão ficar estridente e rascante. Num dos vídeos da gravação em estúdio observei que o violão fora microfonado com um mic dinâmico mirado na boca do instrumento a curta distância e passei a utilizar-me dessa técnica não muito comum. George Harrison, além de dividir o coro com John, toca o baixo, na verdade uma guitarra barítono, apenas com as notas fundamentais dos acordes ou raramente umas inversões e faz um ligeiro overdub de guitarra elétrica dobrando ou imitando o nananana nas entradas e saídas da parte B. E, finalmente, Ringo toca uma bateria aparentemente super humilde porém com detalhes ocultos a um observador menos atento. A caixa e os tontons da bateria estão cobertas com um pano grosso que deixa o som abafado e seco, mais ou menos como bater com a baqueta numa almofada, e o prato de condução é tocado na cúpula, parecendo um sino, e o mais interessante é que o baterista inverte a tradicional batida que os ouvidos já tanto se acostumaram: ao invés de tocar o bumbo nos tempos 1-3-e(do 3), ele toca 1-e(do 1)-3, fazendo parecer estar ao contrário do esperado.
No último verso, Lennon parece novamente não se conter e faz a segunda voz da estrofe, costurando a melodia líder de Paul, ora tecendo os graves, ora atravessando para os agudos. Tudo vai ao mesmo tempo calmo como uma balada, mas também tenso devido à temática da letra em si e ao espírito da época, quando a relação pessoal entre os membros do grupo não ia muito bem. Por esses motivos eles parecem tocar todos os instrumentos com muita força e energia, coisa que se repetiria em uma próxima balada, Don´t let me down. O gran finale se dá com um apogeu redundante da palavra “better” que vai crescendo do grave para o agudo sempre com um semitom abaixo das notas do arpejo maior da tríade de Fá maior, sendo Mi-Fá, Sol#-Lá, Si-Dó, se repetindo por duas oitavas, culminando num Fá, um super-Fá, introduzindo o mantra mixolídio que diz nananana, Hey Jude, transformando seu nome em totem, em símbolo de força e resiliência e nanana é uma maneira de dizer nananão, deixa disso Jude, vai tudo ficar melhor, melhor, melhor....
OBS 1: É impressionante os gritos desesperados e rockes que McCartney dá durante o final, entrecortando o mantra com urros. Vale a pena se atentar a cada um.
OBS2: Aos 5´36” rola o famoso chamado de Lennon que no Brasil se popularizou como “Pega o cavaquinho” mas na verdade era “’pain won´t come back Jude”.
OBS3: Uma escolha estética da época fazia com que os pandeiros e pandeirolas aparecessem muitas vezes, nas mixagens, com o volume mais alto do que o da bateria. Este é um caso de pandeiro solista.
OBS4: Já ouvi e li por diversas vezes que Ringo não era um bom baterista, do que discordo veementemente. Nessa canção ele espera por um bom tempo, até a parte B para entrar com a bateria. Essa simples escolha já o torna um esteta do instrumento e o fato de ele distinguir tão bem o momento para entrar e tocar já o coloca no panteão das baquetas do rock, pois simplicidade não é sinônimo de inocência ou despreparo, muito ao contrário. Sua paciência em sentar-se na bateria e tocar um pandeiro na primeira parte acentua a sensação de quebra da primeira para a segunda. O mesmo se dá com os outros instrumentos que vão chegando de um a um, se aproximando lentamente do interlocutor e também do personagem protagonista, num gradual abraço até um cafuné carinhoso e coletivo, motivando-o a sair desse estado de tristeza e gerando nele força e alegria de viver.
OBS5: Reforço o refinamento estético do drummer enfatizando um momento que dura menos de um segundo mas que para mim é absolutamente contundente: no fim do apogeu do better better, no momento em que toda a banda para de tocar e ouve-se o grito de Paul ahhhhhh, imediatamente antes do nananana, Ringo toca um chimbal, apenas um, criando uma tensão incomensurável. Outros bateristas provavelmente fariam uma virada nos tontons e caixa e ele escolhe a simplicidade de uma nota para introduzir uma atmosfera iminente. E na minha opinião ele é o melhor nas viradas de rock. Ele é o Bach dos “drum fill”, fazendo as melhores melodias possíveis nos tambores – vide A day in the life, Strawberry Fields Forever e muitas outras. Vale pontuar o fato de ele ser canhoto e acentuar numa bateria para destros, com a mão esquerda.
OBS6: O nanana parece-me claramente uma influência advinda do Gospel e se fosse nananana, oh lord, estaria ainda sim muito bem contextualizada esteticamente. Essa sim é a igreja do rock e se os quatro cabeludos forem futuramente canonizados a mim não será nenhuma surpresa.
30 de setembro de 2019
Rebolo de laranja pêra Rio
Fui surpreendido por essa estranha censura algo(z)rítmica. Minha postagem, com texto escrito no MEU blog, foi censurada pelo facebook, que me mandou mil alertas de "spam". Fato é que eu canso de compartilhar textos como esse e nada acontece. O Rock in Rio deve ter um acordo com o FB para "limpar" a barra do evento em sua rede. Só por isso eu vou compartilhar de novo, colocando todo corpo do texto aqui, e pediria aos amigos e amigas uma forcinha extra nesse pequeno ato de reafirmação diante de uma medida tacanha.
"Roquinquem, cara pálida? (original de 29/09/2019)
O Rock in Rio (RiR) representou, desde o começo, um novo modelo da geopolítica indústria fonográfica muito mais hegemonista e homogeneizador do que das décadas de 1960-70. O quadro maior, muito resumidamente, era o seguinte, um rearranjo do mercado fonográfico internacional, com a redução de "majors", a decisão de padronizar / centralizar mais a produção, de apostar menos, de radicalizar no jabá, de apostar mais no consumidor jovem - aí se alavanca o crescimento das FMs - e concomitantemente, no Brasil, com o decréscimo do volume e do prestígio dos festivais, ficou muito difícil a renovação de quadros da MPB. Os que já tinham algum lastro resistiram. Nos anos 1980 a balança de venda de discos pendem mais aos estrangeiros, nos anos 1990 voltou aos nacionais, mas aí alicerçada na farofa comercial de axé, pagode e sertanejo.
O RiR a meu ver é sobretudo um evento viralata de grandes proporções, que naquele momento influiu na formação do gosto, especialmente dos jovens daquela época. No imaginário nacional, obviamente, o modelo de festival passou a ser esse, com artistas nacionais abrindo para internacionais, e com a centralidade do rock que naquele momento era o grosso do mainstream pop, fosse qual fosse a "roupagem". Eis a programação completa da primeira edição:
Houve uma articulação entre coisas acontecendo no mercado internacional e no próprio mercado brasileiro, em que fica evidente o enfraquecimento de uma linha que vinha nos anos 1970, quando num dado momento Chico, Elis, Milton, vendiam num patamar muito mais alto, ocupavam o centro da mídia, etc... Mas com o fim dos festivais brasileiros da canção e a mudança de estratégia das gravadoras, eles ficaram "ilhados" em nichos e o catálogo novo passou a ser menos ousado musicalmente e bem mais colonizado.
Existem estratégias de marketing que são explícitas, e para além delas existe uma hierarquia cultural que é preciso ver além da contabilidade. Coisas como ordem das apresentações, atitudes de bastidores, enfim, um sem número de exemplos em que a construção simbólica foi sempre a de que o nacional era preterido em algum nível. Há vários relatos sobre, ou momentos emblemáticos como o confronto do Carlinhos Brown (que ironia esse sobrenome artístico nesse ponto) com o público que esperava por sei lá que banda.
As marcas são as protagonistas desse modelo de espetáculo globalizado, vide depoimento do empresário Roberto Medina, promotor do evento [link]. Se a gente olhar Copa do Mundo, Olimpíadas, qq coisa assim de porte, sempre serão elas que dão as cartas. Reparem que o que elas mais querem é controle. Vide uma "lei geral da copa". Então, girando mais um pouco o parafuso, é o projeto econômico e político das corporações que promove essa vertente de consumo globalizado padrão. RiR é um produto direto disso. Parece que nos últimos tempos houve uma naturalização daquilo que nos anos 1980 era claro que seriam dos grandes agentes opressores do mundo globalizado, as corporações.Os comerciais dos anos 1980 parecem ecoar em meus ouvidos: "Coca-Cola é isso aí! Hollywood, o sucesso!".
A aceitação desavisada, por vezes míope, de teorias e estudos que elevam ao suprasumo tudo que se dá no que, por exercício macunaímico, me permito nomear sumariamente de "o micro", leva a equívocos absurdos como o Ivan Valente louvando o início do Rock in Rio pq uma jovem fez uma justa homenagem à Marielle Franco antes de seu show. Nenhuma palavra do nobre deputado sobre a natureza do evento, tampouco sobre a lamentável cena do "Palco Favela" sob luzes de holofote e ruídos emulando helicópteros, numa alegoria da luta de classe em estado de choque ou êxtase - dependendo do lugar no espaço urbano e social o sujeito se encontra. Essa do helicóptero é nível bolsonaro de escrotice destilada [link]. Eis a mais pura miséria da microscópica política. Estamos virando figurantes de um roteiro distópico hollywoodiano de quinta categoria. Eu conclamo um repúdio massivo a esse negócio demente de ficar romantizando favela, e sobretudo no contexto de um festival famigerado como Roquinrio num momento como esse. Precisamos recuperar nossa dignidade.
"Roquinquem, cara pálida? (original de 29/09/2019)
O Rock in Rio (RiR) representou, desde o começo, um novo modelo da geopolítica indústria fonográfica muito mais hegemonista e homogeneizador do que das décadas de 1960-70. O quadro maior, muito resumidamente, era o seguinte, um rearranjo do mercado fonográfico internacional, com a redução de "majors", a decisão de padronizar / centralizar mais a produção, de apostar menos, de radicalizar no jabá, de apostar mais no consumidor jovem - aí se alavanca o crescimento das FMs - e concomitantemente, no Brasil, com o decréscimo do volume e do prestígio dos festivais, ficou muito difícil a renovação de quadros da MPB. Os que já tinham algum lastro resistiram. Nos anos 1980 a balança de venda de discos pendem mais aos estrangeiros, nos anos 1990 voltou aos nacionais, mas aí alicerçada na farofa comercial de axé, pagode e sertanejo.
O RiR a meu ver é sobretudo um evento viralata de grandes proporções, que naquele momento influiu na formação do gosto, especialmente dos jovens daquela época. No imaginário nacional, obviamente, o modelo de festival passou a ser esse, com artistas nacionais abrindo para internacionais, e com a centralidade do rock que naquele momento era o grosso do mainstream pop, fosse qual fosse a "roupagem". Eis a programação completa da primeira edição:
Houve uma articulação entre coisas acontecendo no mercado internacional e no próprio mercado brasileiro, em que fica evidente o enfraquecimento de uma linha que vinha nos anos 1970, quando num dado momento Chico, Elis, Milton, vendiam num patamar muito mais alto, ocupavam o centro da mídia, etc... Mas com o fim dos festivais brasileiros da canção e a mudança de estratégia das gravadoras, eles ficaram "ilhados" em nichos e o catálogo novo passou a ser menos ousado musicalmente e bem mais colonizado.
Existem estratégias de marketing que são explícitas, e para além delas existe uma hierarquia cultural que é preciso ver além da contabilidade. Coisas como ordem das apresentações, atitudes de bastidores, enfim, um sem número de exemplos em que a construção simbólica foi sempre a de que o nacional era preterido em algum nível. Há vários relatos sobre, ou momentos emblemáticos como o confronto do Carlinhos Brown (que ironia esse sobrenome artístico nesse ponto) com o público que esperava por sei lá que banda.
As marcas são as protagonistas desse modelo de espetáculo globalizado, vide depoimento do empresário Roberto Medina, promotor do evento [link]. Se a gente olhar Copa do Mundo, Olimpíadas, qq coisa assim de porte, sempre serão elas que dão as cartas. Reparem que o que elas mais querem é controle. Vide uma "lei geral da copa". Então, girando mais um pouco o parafuso, é o projeto econômico e político das corporações que promove essa vertente de consumo globalizado padrão. RiR é um produto direto disso. Parece que nos últimos tempos houve uma naturalização daquilo que nos anos 1980 era claro que seriam dos grandes agentes opressores do mundo globalizado, as corporações.Os comerciais dos anos 1980 parecem ecoar em meus ouvidos: "Coca-Cola é isso aí! Hollywood, o sucesso!".
A aceitação desavisada, por vezes míope, de teorias e estudos que elevam ao suprasumo tudo que se dá no que, por exercício macunaímico, me permito nomear sumariamente de "o micro", leva a equívocos absurdos como o Ivan Valente louvando o início do Rock in Rio pq uma jovem fez uma justa homenagem à Marielle Franco antes de seu show. Nenhuma palavra do nobre deputado sobre a natureza do evento, tampouco sobre a lamentável cena do "Palco Favela" sob luzes de holofote e ruídos emulando helicópteros, numa alegoria da luta de classe em estado de choque ou êxtase - dependendo do lugar no espaço urbano e social o sujeito se encontra. Essa do helicóptero é nível bolsonaro de escrotice destilada [link]. Eis a mais pura miséria da microscópica política. Estamos virando figurantes de um roteiro distópico hollywoodiano de quinta categoria. Eu conclamo um repúdio massivo a esse negócio demente de ficar romantizando favela, e sobretudo no contexto de um festival famigerado como Roquinrio num momento como esse. Precisamos recuperar nossa dignidade.
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29 de setembro de 2019
Roquinquem, cara pálida?
O Rock in Rio (RiR) representou, desde o começo, um novo modelo da geopolítica indústria fonográfica muito mais hegemonista e homogeneizador do que das décadas de 1960-70. O quadro maior, muito resumidamente, era o seguinte, um rearranjo do mercado fonográfico internacional, com a redução de "majors", a decisão de padronizar / centralizar mais a produção, de apostar menos, de radicalizar no jabá, de apostar mais no consumidor jovem - aí se alavanca o crescimento das FMs - e concomitantemente, no Brasil, com o decréscimo do volume e do prestígio dos festivais, ficou muito difícil a renovação de quadros da MPB. Os que já tinham algum lastro resistiram. Nos anos 1980 a balança de venda de discos pendem mais aos estrangeiros, nos anos 1990 voltou aos nacionais, mas aí alicerçada na farofa comercial de axé, pagode e sertanejo.
O RiR a meu ver é sobretudo um evento viralata de grandes proporções, que naquele momento influiu na formação do gosto, especialmente dos jovens daquela época. No imaginário nacional, obviamente, o modelo de festival passou a ser esse, com artistas nacionais abrindo para internacionais, e com a centralidade do rock que naquele momento era o grosso do mainstream pop, fosse qual fosse a "roupagem". Eis a programação completa da primeira edição:
Houve uma articulação entre coisas acontecendo no mercado internacional e no próprio mercado brasileiro, em que fica evidente o enfraquecimento de uma linha que vinha nos anos 1970, quando num dado momento Chico, Elis, Milton, vendiam num patamar muito mais alto, ocupavam o centro da mídia, etc... Mas com o fim dos festivais brasileiros da canção e a mudança de estratégia das gravadoras, eles ficaram "ilhados" em nichos e o catálogo novo passou a ser menos ousado musicalmente e bem mais colonizado.
Existem estratégias de marketing que são explícitas, e para além delas existe uma hierarquia cultural que é preciso ver além da contabilidade. Coisas como ordem das apresentações, atitudes de bastidores, enfim, um sem número de exemplos em que a construção simbólica foi sempre a de que o nacional era preterido em algum nível. Há vários relatos sobre, ou momentos emblemáticos como o confronto do Carlinhos Brown (que ironia esse sobrenome artístico nesse ponto) com o público que esperava por sei lá que banda.
As marcas são as protagonistas desse modelo de espetáculo globalizado, vide depoimento do empresário Roberto Medina, promotor do evento [link]. Se a gente olhar Copa do Mundo, Olimpíadas, qq coisa assim de porte, sempre serão elas que dão as cartas. Reparem que o que elas mais querem é controle. Vide uma "lei geral da copa". Então, girando mais um pouco o parafuso, é o projeto econômico e político das corporações que promove essa vertente de consumo globalizado padrão. RiR é um produto direto disso. Parece que nos últimos tempos houve uma naturalização daquilo que nos anos 1980 era claro que seriam dos grandes agentes opressores do mundo globalizado, as corporações.Os comerciais dos anos 1980 parecem ecoar em meus ouvidos: "Coca-Cola é isso aí! Hollywood, o sucesso!".
A aceitação desavisada, por vezes míope, de teorias e estudos que elevam ao suprasumo tudo que se dá no que, por exercício macunaímico, me permito nomear sumariamente de "o micro", leva a equívocos absurdos como o Ivan Valente louvando o início do Rock in Rio pq uma jovem fez uma justa homenagem à Marielle Franco antes de seu show. Nenhuma palavra do nobre deputado sobre a natureza do evento, tampouco sobre a lamentável cena do "Palco Favela" sob luzes de holofote e ruídos emulando helicópteros, numa alegoria da luta de classe em estado de choque ou êxtase - dependendo do lugar no espaço urbano e social o sujeito se encontra. Essa do helicóptero é nível bolsonaro de escrotice destilada [link]. Eis a mais pura miséria da microscópica política. Estamos virando figurantes de um roteiro distópico hollywoodiano de quinta categoria. Eu conclamo um repúdio massivo a esse negócio demente de ficar romantizando favela, e sobretudo no contexto de um festival famigerado como Roquinrio num momento como esse. Precisamos recuperar nossa dignidade.
A aceitação desavisada, por vezes míope, de teorias e estudos que elevam ao suprasumo tudo que se dá no que, por exercício macunaímico, me permito nomear sumariamente de "o micro", leva a equívocos absurdos como o Ivan Valente louvando o início do Rock in Rio pq uma jovem fez uma justa homenagem à Marielle Franco antes de seu show. Nenhuma palavra do nobre deputado sobre a natureza do evento, tampouco sobre a lamentável cena do "Palco Favela" sob luzes de holofote e ruídos emulando helicópteros, numa alegoria da luta de classe em estado de choque ou êxtase - dependendo do lugar no espaço urbano e social o sujeito se encontra. Essa do helicóptero é nível bolsonaro de escrotice destilada [link]. Eis a mais pura miséria da microscópica política. Estamos virando figurantes de um roteiro distópico hollywoodiano de quinta categoria. Eu conclamo um repúdio massivo a esse negócio demente de ficar romantizando favela, e sobretudo no contexto de um festival famigerado como Roquinrio num momento como esse. Precisamos recuperar nossa dignidade.
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23 de setembro de 2019
A podre delícia na boca do menino que xinga padre e pedra
Muitos estão comentando a entrevista que Milton Nascimento concedeu à Folha, especialmente pela frase bombástica em destaque, "A música brasileira está uma merda" [link]. Apesar de 'n' ponderações que a
fala suscitou, deve estar perdida num tempo imemorial qual a última coisa dita por Milton Nascimento que provocou algum debate consequente. Só por
isso já está valendo. No restante ela sofre do mal da maioria das entrevistas com músicos de quilate que são de uma redundância renitente em relação às anteriores, como já escrevi aqui.
Certamente, com um pouco de
boa vontade, todo mundo está entendendo que o Milton está falando do que
está tocando no rádio e sendo apresentado nos grandes canais de mídia,
quem faz um disco como "E a gente sonhando" não ignora que há música boa
produzida pelas novas gerações. Esse protesto serve bem inclusive para
ajudar a abrir um pouco de espaço. Mas como o Tiago Iorc, a Maria Gadu, o
Criolo, já furaram alguma resistência, claro que seria desejável que
ele falasse nomes que não são conhecidos, aproveitando a voz
que ele ainda tem.
Entrei lá na página oficial Milton "Bituca" Nascimento, vi que tinha gente corroborando e gente questionando. O debate esquentou e surgiu uma explicação, bem protocolar, coisa de assessoria, tentando conter os desentendimentos e alegando que a fala estava circulando fora de contexto, mas por sua vez instigando novas discussões em função de nomes escolhidos para sinalizar algum conhecimento do que seria produzido fora dos canais de sucesso. Ficou patente a parca presença de músicos mineiros entre os que aí foram citados, por exemplo. Acho que
legitimamente muitos estão incomodados porque nessa oportunidade o
Bituca poderia ter remetido a uma música mil vezes melhor que é feita no
Brasil todo, e que certamente ele desconhece ou nem mesmo sua assessoria
lhe ajuda a conhecer. Então ele lançou uma observação certeira mas não
tem muito mais que isso a contribuir com o debate, como fica evidente.
Não que ele seja obrigado. Não acho justo que na idade dele, e com tantos serviços prestados à nossa música, e tanta gente que ele promoveu por toda a carreira, isso seja simplesmente esquecido porque agora ele de algum modo se mostra alheio. Quanto a isso nós podemos muito bem cumprir a
tarefa.
Nesse ponto faço questão de recuperar uma série realizada aqui no blog, com textos do meu parceiro Pablo Castro, o Eldorado Subterrâneo da Canção, contendo "canções de lavra recente, especialmente aquelas compostas por cantautores nossos contemporâne@s da cena mineira que por 'n' razões - que poderão até vir a ser debatidas por aqui - permanecem ainda alheias dos ouvidos de uma parte substancial do público, certamente sem merecer tal destino".
Finalmente, vamos voltar a crítica pra onde está realmente o problema, que é
na indústria e nos meios. Quem não está fazendo a música boa que é feita
no Brasil todo chegar a mais ouvidos são as gravadoras, as rádios, as
televisões, os sites de muito acesso,
etc. Então eu vou
acrescentar que o que está uma merda mesmo são os meios que em outros tempos até faziam a
música maravilhosa que era feita todo dia chegar a mais ouvidos. E o público que não corre atrás nem exige desses meios que costuma
acessar uma programação mais diversificada tem sua parcela também. Sem
paternalismo. Já tratamos disso neste blog em textos como esse aqui. Se essa entrevista aumentar a atenção e consciência das
pessoas para o problema, terá sido muito relevante. Quero terminar falando da velhice. Talvez uma parcela cada vez maior da sociedade esteja confundindo o fato de que não se concede mais uma autoridade automática ao que diz uma pessoa mais velha com uma total falta de consideração ou empatia por uma condição que, como diz o brilhante livro de Ecléa Bosi, faz de todos nós membros de uma comunidade de destino - todos que não partirem cedo irão envelhecer. Nessa condição, muitas vezes, nem sempre será a sabedoria com o peso dos anos a portadora do recado. Pode ser uma molequice desbocada, traquina, a podre delícia na boca do menino que xinga padre e pedra.
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4 de setembro de 2019
O samba na caixa de fósforos - adeus a Elton Medeiros
É assim, percutindo com maestria uma caixinha de fósforos, que me lembro com mais nitidez da figura de Elton Medeiros. Ele se apresentava no Programa Ensaio, essa verdadeira enciclopédia audiovisual da nossa música popular. Meus olhos e ouvidos ficaram hipnotizados, incapazes de buscar qualquer outro interesse que não aquele som que poucos, mesmo entre os bambas, conseguem tirar. Descobri nessa mesma noite que Elton era parceiro de Cartola no samba "O sol nascerá" (como ele mesmo explicou, também conhecido como "A sorrir..."), uma dessas pérolas que a gente escuta e não esquece jamais. Talvez por não ser tão consagrado como intérprete, Elton Medeiros não seja tão conhecido e reverenciado quanto parceiros seus como Cartola e Paulinho da Viola.
Por duas ocasiões tive oportunidade de constatar e me postar contra uma certa falta de consideração a seus créditos, justamente por "O sol nascerá". A primeira foi quando assisti a uma apresentação da então presidente do MIS-RJ na Conferência Geral do ICOM, em 2013 na própria capital carioca, em que recebi dela um material institucional relacionado à promoção da nova sede de Copacabana, cuja construção infelizmente ainda não foi concluída. Percebi que a canção era citada com crédito apenas a Cartola, me identifiquei e discretamente lhe chamei a atenção para o erro. Ela me agradeceu protocolarmente mas tenho pra mim que não deve ter gostado muito de ter que responder - como lhe cabia, pelo cargo - pela falha. É muito importante revisar esse tipo de peça gráfica que se reproduz depois aos milhares, pois basicamente é impossível retificar erros. A segunda, foi quando apontei o mesmo erro ao proprietário de uma página de rede social, então bastante visitada, sobre cultura, semiótica, literatura e afins. Ao invés de agradecer e me creditar o auxílio na correção - feito no comentário da postagem- ele simplesmente fez a mudança e deixou a entender que não havia cometido o erro. Isso tem muitos anos, ainda estávamos longe da generalizada disseminação de falsificações de toda ordem que tomou conta da internet, mas me pareceu um ato deplorável, ao qual fiz questão de responder, convidando inclusive alguns amigos que também acompanhavam a mesma postagem a testemunhar a validade da minha intervenção e participar de uma rápida troca de "amabilidades" pelas quais deixei claro que havia o erro e fora a minha intervenção que propiciara a correção. Depois disso, deixamos eu e outros que acompanharam o caso de manter contato com a tal página, cujo nome já nem me lembro.
Quero lembrar mesmo é de Elton Medeiros, de seus sambas inesquecíveis, e daquele som hipnótico da caixinha de fósforos.
P.S. Este texto não se pretende um obituário, para isso pode-se ler aqui.
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3 de agosto de 2019
ÀS CEGAS
Estou querendo tanto falar dessa canção que vou até compartilhar link do Spotify - esse bandidinho que não credita os autores, e do qual os letristas são vítimas preferenciais. Deixo claro que isento qualquer parceiro meu de responsabilidade aí, isso é um defeito da plataforma, e que vem sendo criticado por todos. Entendo, obviamente, a necessidade de quem vive de música de colocar, mesmo a contragosto, seu trabalho para circular em todos os meios possíveis.
Bom, mas vamos ao mais importante. Essa eu recebi na mesma ocasião da música que veio a se tornar Veneno remédio, só que com uma curiosa e lacônica indicação. O título estava embutido no nome do arquivo MP3 que o Maurício Ribeiro, autor da música, me mandou. Um título assim, "às cegas" e "à seco", pode ser a fagulha para a criação, mas pode também bloquear tudo. A melodia tinha lirismo mas também era meio soturna. Como na anterior eu considerei que acertei a mão sem maiores indicações, resolvi ir em frente. Lancei mão de um recurso que tenho usado com alguma frequência, buscar algum texto previamente elaborado que não virou nada, do qual eu possa extrair alguma coisa. Encontrei então esse refugo intitulado "Soslaio", de onde pincei versos como "ferpa no assoalho", "ruga de uma velha", "pulga atrás da orelha", ou palavras como "caramujo" e o "soslaio" do título.
O verso da velha acabou se tornando o ponto nevrálgico da escrita. "Às cegas" acabou sendo bastante literal, dentro da narrativa que fui construindo sobre o estado decadente da minha personagem. A música me remetia ainda às tristes baladas macartneyanas sobre separação e solidão do disco Revolver, For no one e Eleanor Rigby, e obviamente tracei um retrato da velhice como condição solitária e frágil. Uma grande influência de Paul em meu trabalho é a condição compartilhada de romancista frustrado - e é realmente puxado o exercício de sintetizar ideias que poderiam se desenvolver por longas páginas nos poucos versos e duração de uma canção. Emergiu um retrato muito áspero, cru mesmo, algo naturalista, elencando os sinais e gestos de decrepitude da protagonista. Ocorreu num certo momento, obviamente na cadeia das reiteradas rimas em "iz/is", que ela poderia ter sido atriz, ou na sua senilidade se comportasse como tal. Um eco distante, quem sabe, da Miss Havisham de Grandes Esperanças, meu romance preferido de Dickens, certa feita interpretada de modo marcante por Anne Bancroft (a icônica Mrs Robinson de A primeira noite de um homem). Talvez possamos ver a velha também como professora, por sugestão de "breu" e "giz".
Este é o tipo de letra que, depois de encontrado o mote, se escreve praticamente por embalo. Aqui e ali algumas jogadas, como a sequência de rimas internas nos 2ºs versos. A forma da música AABAAB'A' propõe estrofes - A - bem definidas entremeadas por pontes - B,B' - que só tem em comum o verso introdutório - repetição que busquei enfatizar com a parelha "se insinua então/se está nua então". Na estrofe final uma variação sugerida pelo Maurício que adotamos - bisa "desdobrando" o primeiro verso, e uma repetição até o gran finale em que a letra sugere para o arranjo a diminuição de andamento e o "desmanchar" no destino final da personagem e da gravação.
Não tínhamos ideia, naqueles idos, que viveríamos pra ver uma "deforma" da Previdência que agravaria as expectativas de um final de vida decente para boa parte das pessoas no Brasil. Não que haja algo de premonitório, mas de algum modo a canção agora inevitavelmente será ouvida e interpretada neste contexto. Claro, preferencialmente é um exame duro sobre a velhice, mas quem sabe não seja fatalista, por um triz.
O verso da velha acabou se tornando o ponto nevrálgico da escrita. "Às cegas" acabou sendo bastante literal, dentro da narrativa que fui construindo sobre o estado decadente da minha personagem. A música me remetia ainda às tristes baladas macartneyanas sobre separação e solidão do disco Revolver, For no one e Eleanor Rigby, e obviamente tracei um retrato da velhice como condição solitária e frágil. Uma grande influência de Paul em meu trabalho é a condição compartilhada de romancista frustrado - e é realmente puxado o exercício de sintetizar ideias que poderiam se desenvolver por longas páginas nos poucos versos e duração de uma canção. Emergiu um retrato muito áspero, cru mesmo, algo naturalista, elencando os sinais e gestos de decrepitude da protagonista. Ocorreu num certo momento, obviamente na cadeia das reiteradas rimas em "iz/is", que ela poderia ter sido atriz, ou na sua senilidade se comportasse como tal. Um eco distante, quem sabe, da Miss Havisham de Grandes Esperanças, meu romance preferido de Dickens, certa feita interpretada de modo marcante por Anne Bancroft (a icônica Mrs Robinson de A primeira noite de um homem). Talvez possamos ver a velha também como professora, por sugestão de "breu" e "giz".
Este é o tipo de letra que, depois de encontrado o mote, se escreve praticamente por embalo. Aqui e ali algumas jogadas, como a sequência de rimas internas nos 2ºs versos. A forma da música AABAAB'A' propõe estrofes - A - bem definidas entremeadas por pontes - B,B' - que só tem em comum o verso introdutório - repetição que busquei enfatizar com a parelha "se insinua então/se está nua então". Na estrofe final uma variação sugerida pelo Maurício que adotamos - bisa "desdobrando" o primeiro verso, e uma repetição até o gran finale em que a letra sugere para o arranjo a diminuição de andamento e o "desmanchar" no destino final da personagem e da gravação.
Não tínhamos ideia, naqueles idos, que viveríamos pra ver uma "deforma" da Previdência que agravaria as expectativas de um final de vida decente para boa parte das pessoas no Brasil. Não que haja algo de premonitório, mas de algum modo a canção agora inevitavelmente será ouvida e interpretada neste contexto. Claro, preferencialmente é um exame duro sobre a velhice, mas quem sabe não seja fatalista, por um triz.
Às cegas (Maurício Ribeiro e Luiz Henrique Garcia)
Risco que correu por um triz
Malograda cicatriz
Pulga atrás d’orelha
Ruga d’uma velha
Caule que perdeu a raiz
Madrugada infeliz
Ferpa no assoalho
Retorcido galho
Se insinua então de soslaio
Vento no outono
Da pele,
Da vista,
Às cegas,
Penetra
No quarto
abissal
Vida que encenou nossa atriz
Malfadada imperatriz
Queda da cadeira
Boca de caveira
Ignora o odor do nariz
Encarquilha nos covis
Feito bicho sujo
Lento caramujo
Se está nua então, só decai
teia que se trai
areia que se esvai
a veia sobressalta
Balbucio que se desdiz
Maldizeres infantis
O risco que correu
A vida por um triz
Acaba nesse breu
Desmancha feito um giz
O risco que correu
A vida por um triz
Acaba nesse breu
Desmancha feito um giz
https://open.spotify.com/track/1fNM0XuIMTEzCTta4FFJSO
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Produção Artística
9 de julho de 2019
À MUSA
Em fevereiro de 2018 tive a satisfação de assistir na Casa Idea ao show de lançamento de um de seus discos e conhecer o cantor, compositor, violonista e arranjador Benji Kaplan, vindo de Nova Iorque para o Brasil e BH - à época ele concedeu entrevista à rádio UFMG Educativa, que pode ser ouvida aqui. A "ponte aérea" tem o dedo de nosso agora parceiro partilhado, Makely Ka, que topou por lá com o nosso caro "novaiorquine" e já havia composto com ele pérolas como "Baião para Gershwin" e "Fuga de Alcatraz". Naquele dia, foi ainda o mesmo Makely que nos apresentou formalmente e ensejou, de certo modo, o que viria a ser essa primeira parceria minha e do Benji. Preciso dizer ainda que nesta mesma noite ele contou com a participação de sua parceira de vida e música Rita Figueiredo, e que os dois formam um duo estupendo, como se pode conferir ouvindo o disco de ambos aqui. Digo isso também para explicar que Benji Kaplan, não bastasse ser admirador, estudioso e influenciado pela música popular brasileira, digo sem medo de errar, tornou-se seu partícipe, esposando o conhecimento de seus estilos e ritmos com melodias intrincadas, harmonias sofisticadas e desafio de forma que exige letras que se equiparem a tal lapidação musical.
A ideia de fazer uma letra para uma música dessas era encrenca - da boa! Às vezes a proposição acontece numa conversa e fica assim num limbo por um tempo, em "banho maria", como dizemos aqui. Mas não foi o caso! Benji logo me manda uma... a belíssima "Folhas ao vento" (Leaves in the wind) que figurava em versão instrumental justamente no disco que viera lançar, Chorando sete cores. Como sempre, quando se inicia uma parceria nova, fico cheio de dedos e quero me entender, sobretudo quanto aos métodos e prazos, porque é importante um entendimento cristalino sobre essas coisas. Para mim é a base sem a qual não pode surgir o entrosamento necessário. Depois é tentar decifrar uma intenção, ouvindo a música e falando sobre ela com o parceiro. O Benji me deixou à vontade, mas eu estava era preocupado com a incumbência. Tanto que me esmerei uns meses até que, no final de maio, tinha uma primeira versão completa.
Comecei pelo título anterior, e obviamente a música remetia ao movimento das folhas bailando ao vento. Como na área área externa do apartamento em que moro, vizinha de uma casa com um pomar enorme, caem muitas folhas, esse mote inicial me deu os primeiros versos, coincidindo com a chegada do outono por aqui. Isso poderia levar a qualquer lugar. Mas eu já estava aflito com o cenário político brasileiro. Por outro lado, o lirismo extremo da música sugeria um tema romântico. Pensei no outono como estação de transição, e fui esboçando uma história de separação de espera da pessoa amada, mas também me esquentando a pestana a tensão política. Pintou a ideia de fazer uma letra como aquelas do tempo da censura - tendo especialmente as de Aldir Blanc e Chico Buarque como referências. É quase como se cada estrofe respondesse a um estado de espírito diferente, o outono e as folhas preludiando o inverno, e a espera incerta do ente amado, a princípio levada com certa ironia e autocontrole, vai se tornando mais angustiante, frustrante, justamente quando a canção muda o percurso melódico e o lamento da perda se converte em apelo ao retorno. Incrível a forma como o material da experiência pessoal se imiscui nas letras mesmo subconscientemente. Realmente eu estava dormindo muito mal. Nos meus rascunhos guardei versos como "Eu tenho pouco sono/Não durmo nem no escuro/ Me cubro de lembranças" que se aplicaria ao tema musical inicial, mas acabou convertido oportunamente na parte em que o "eu lírico", insone, procura inutilmente sua amada na cama. Essa súplica se coloca a partir da sensação de aprisionamento e o anseio por libertação. O retorno ao veio melódico central, ainda que com variação, me sugeriu o alento, a primavera que sucederia o inverno, o céu aberto. Nisso tudo há o retorno assumido, deslavado, de metáforas recorrentes dos anos de chumbo. Também entrego claramente meu ofício de historiador, em referências que não são difíceis de sacar, e que ao final amarram o sentido subentendido de quem vem a ser a musa à qual a letra se endereça. E quando a melodia caminha para o encerramento, se a volta do mote inicial sugere um retorno ao primeiro estado emocional, não é bem isso, já que a mudança enseja uma conclusão e a grande lição da História é justamente essa: tudo muda.
Comecei pelo título anterior, e obviamente a música remetia ao movimento das folhas bailando ao vento. Como na área área externa do apartamento em que moro, vizinha de uma casa com um pomar enorme, caem muitas folhas, esse mote inicial me deu os primeiros versos, coincidindo com a chegada do outono por aqui. Isso poderia levar a qualquer lugar. Mas eu já estava aflito com o cenário político brasileiro. Por outro lado, o lirismo extremo da música sugeria um tema romântico. Pensei no outono como estação de transição, e fui esboçando uma história de separação de espera da pessoa amada, mas também me esquentando a pestana a tensão política. Pintou a ideia de fazer uma letra como aquelas do tempo da censura - tendo especialmente as de Aldir Blanc e Chico Buarque como referências. É quase como se cada estrofe respondesse a um estado de espírito diferente, o outono e as folhas preludiando o inverno, e a espera incerta do ente amado, a princípio levada com certa ironia e autocontrole, vai se tornando mais angustiante, frustrante, justamente quando a canção muda o percurso melódico e o lamento da perda se converte em apelo ao retorno. Incrível a forma como o material da experiência pessoal se imiscui nas letras mesmo subconscientemente. Realmente eu estava dormindo muito mal. Nos meus rascunhos guardei versos como "Eu tenho pouco sono/Não durmo nem no escuro/ Me cubro de lembranças" que se aplicaria ao tema musical inicial, mas acabou convertido oportunamente na parte em que o "eu lírico", insone, procura inutilmente sua amada na cama. Essa súplica se coloca a partir da sensação de aprisionamento e o anseio por libertação. O retorno ao veio melódico central, ainda que com variação, me sugeriu o alento, a primavera que sucederia o inverno, o céu aberto. Nisso tudo há o retorno assumido, deslavado, de metáforas recorrentes dos anos de chumbo. Também entrego claramente meu ofício de historiador, em referências que não são difíceis de sacar, e que ao final amarram o sentido subentendido de quem vem a ser a musa à qual a letra se endereça. E quando a melodia caminha para o encerramento, se a volta do mote inicial sugere um retorno ao primeiro estado emocional, não é bem isso, já que a mudança enseja uma conclusão e a grande lição da História é justamente essa: tudo muda.
*Imagem: Atena e as Musas - Hendrick van Balen the Elder (1573–1632)
No tempo do outono
À musa - música de Benji Kaplan; letra de Luiz Henrique Garcia
No tempo do outono
As folhas vão ao vento
e lento no meu passo
amasso
as que pisar
Não sei se você volta após a estação
apressada
de metrô
na blusa de tricô
que eu te dei nas férias
Passadas em Atenas
Mas lágrimas apenas
em plena idade média vem,
no alvorecer
perscruto você
seu braço, cadê
o nosso lençol
não sei mais dormir
desliga esse sol
me afasta essa mira
me tira do calabouço já
Ó musa da minha lira
Divago no meu canto
E vejo de soslaio a cor da Primavera de Paris
Na barricada desse lar
vigio até você entrar
no dia em que o céu se abrir
No tempo do outono
As folhas vão ao vento
E o tempo há de mudar
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