Espaço que visa divulgar e disponibilizar trabalhos de criação e crítica referentes à MPB e música popular, não apenas para promover o intercâmbio de gostos e opiniões, mas fundamentalmente catapultar o debate sobre o tema.
Cerejas
Silêncio
A Câmara Municipal está tratando de abolir os barulhos harmoniosos da cidade: os auto-falantes e as vitrolas. [...] Gosto daqueles móveis melódicos e daquelas cornetas altíssonas. Fazem bem aos nervos. A gente anda, pelo centro, com os ouvidos cheios de algarismos, de cotações da bolsa de café, de câmbio, de duplicatas, de concordatas, de "cantatas", de negociatas e outras cousas chatas. De repente, passa pela porta aberta de uma dessas lojas sonoras e recebe em cheio, em plena trompa de Eustáquio, uma lufada sinfônica, repousante de sonho [...] E a gente pára um pouco nesse halo de encantado devaneio, nesse nimbo embalador de música, até que a altíssima farda azul marinho venha grasnar aquele horroroso "Faz favorrr, senhorrr!", que vem fazer a gente circular, que vem repor a gente na odiosa, geométrica, invariável realidade do Triângulo - isto é, da vida." Urbano (Guilherme de Almeida), 1927.
Enfim o mundo não acabou e nós chegamos ao último dia do ano de 2012. Venho fazendo uma retrospectiva de postagens desse ano, não necessariamente as "melhores", mas as mais significativas por um motivo ou outro. Nada propriamente sistemático mas geralmente escolhi uma por mês. Vou ver se coloco os links ao final dessa postagem ou em uma página separada. No geral posso dizer que foi um ano importante para consolidar algumas ideias em relação ao blog, fazer melhorias e crescer em acessos e assinantes, especialmente pelo sucesso da lista das canções do Clube da Esquina feita pelo Pablo Castro neste dezembro. Muitos planos para 2013, incluindo maiores colaborações e mudanças no layout que já estou estudando.
Para encerrar o ano acabei reunindo alguma coisa a partir de uma canção de ano novo, Ding Dong, Ding Dong, de George Harrison (compacto simples e disco Dark Horse, 1974). Uma das maiores qualidades dele, que sempre me causou forte impressão, é a inclinação para a auto-ironia. Uma canção aparentemente despretensiosa, calcada numa expressão de uso corrente para celebrar a virada do ano, estava de fato impregnada pela eminência de sua separação - "Ring out the old, ring in the new". Ring nesse caso remete ambiguamente ao soar dos sinos e ao uso do anel. Essa citação, trecho da seção do poema In memoriam de Lorde Tennyson, e outras tantas frases e expressões, George encontrou gravadas em vários pontos de Friar Park, a mansão cheia de jardins em que viveu e que pertecera ao advogado e homem de ciência da Inglaterra vitoriana, Sir Frank Crisp. Além de homenageá-lo com uma canção de seu álbum solo de estréia, All things must pass, Ballad of Sir Frankie Crisp (Let It Roll), Harrison deixou em outras canções pistas da influência de Crisp, que além de naturalista era membro eminente da Real Sociedade de Microscopia. Daí viria a referência ao microscópio em The Answer's at the End (1975, Extra Texture): "Scan not a friend with a microscopic glass/ You know his faults now let his foibles pass". Outra inscrição aparece citada na 2a. parte de Ding Dong, Ding dong, uma brincadeira com a passagem do tempo - e uma provável ironia direcionada principalmente a McCartney e os títulos de suas canções "Yesterday, today was tomorrow / And tomorrow, today will be yesterday", mas de modo geral sarcástica em relação a qualquer sentimento nostálgico relativo aos tempos dos Beatles. O vídeo promocional deixa tudo tão evidente que nem preciso falar mais nada. Só Feliz Ano Novo!
Recomendação do caríssimo amigo internético Alberto Júnior, de quem reproduzo o texto que segue:
"O disco Rosa Semba [ouça aqui] não é somente o registro da voz de Dicy [para conhecer Dicy Rocha, aqui]. Ele acaba sendo importante por ser um abraço sonoro, uma ponta de lança para os novos rumos que a música produzida em São Luís está direcionando. Nas dez músicas que compõem o álbum estão compositores inventivos, como o Beto Ehongue, o Elizeu Cardoso, o Gérson da Conceição, entre outros, que produzem música com aquela antena parabolicamará, ligada na diversidade e daquilo que eu poderia definir como reverberação étnica de nossas matrizes culturais.
Não é fácil selecionar canções e compor um álbum. Agregar músicos para o resultado sonoro que se espera num disco é também uma questão de sorte e afinidade. E isso faz de Rosa Semba também um diferencial porque reúne o talento de jovens músicos com potência e referencial sonoro atualizado com o que é contemporâneo. Trazem consigo a matriz de suas experiências de cultura popular, mas também estão com os ouvidos ligados na música que circula nas nuvens do ciberespaço. Eles não tem a presunção de uma carreira consolidada, mas o vigor da vontade de fazer música. E isso traz entusiasmo.
Eu defendo a ideia de que o disco é um trabalho de tradução. E foi fundamental a presença do músico espanhol Javier, que soube captar os arranjos que cada canção pedia e conseguiu produzir um trabalho radiofônico, com camadas sonoras que vão sendo desveladas a cada nova audição. Nas conversas que tive com o músico, me encantou a maneira como ele descreve seu processo criativo associando musicalidade com experiências sinestésicas. O desafio depois foi o de decidir qual seria o melhor arranjo na diversidade de opções.
Agora, mais do que o resultado sonoro que o disco apresenta, o que na verdade é o seu objetivo, valeu muito à pena acompanhar o processo de feitura, que é quando canção vai ganhando forma, conteúdo e exuberância. A paciência e maturidade de esperar pelo melhor momento foi o que trouxe a consistência que o disco precisava. É claro que tudo com uma dose de intuição e confiança no coletivo, em acreditar que era possível fazer um álbum atemporal. E nesse aspecto, o Joaquim Zion Ferreira estava certo desde o começo. Ele que abraçou a ideia como quem abraça a um filho. O que é a mesma coisa aqui.
Espero que esse pequeno relato tenha despertado a tua curiosidade em ouvir o Rosa Semba. Ele ainda não existe em forma de produto, mas será apresentado hoje aos ouvidos curiosos e afetivos, como uma maneira delicada de saudar o novo ano, abraçar a querida Dicy e ter aquele otimismo de que a produção musical no maranhão pode acontecer de um jeito tranquilo e digno.
Conferi ontem a exposição Viva Elis, em cartaz no Palácio das Artes (BH) entre os dias 27 de novembro e 6 de janeiro de 2013 [outras informações, aqui]. Com uma proposta de tributo, bem definida desde o princípio, inclusive pela presença do filho João Marcelo Bôscolli como um dos curadores (ao lado de Allen Guimarães), a exposição cumpre bem essa proposta. Como encontrei uma resenha panorâmica e correta, feita por Danilo Casaletti [aqui], vou apenas complementar e pontuar algumas coisas.
É basicamente um bom apanhado de imagens em vídeo, fotos, algumas citações de entrevistas (que devem ter tirado do livro Furacão Elis) e a discografia digitalizada que pode ser ouvida em terminais. Tem ainda alguns vestidos, reproduções de figurinos, achei meio sem jeito porque não tem mais nada de acervo tridimensional, salvo um microfone (sem qualquer legenda ou indicação) que está perdido numa área fechada em que passa o vídeo final muito bem editado. Pra variar a exposição não teve pesquisa de fundo, apenas identificação e seleção de acervo. A coisa mais parecida com pesquisa são recortes de jornais e revistas, críticas de época associados aos discos que ficam nos terminais mas sem maiores desdobramentos e com acesso bem ruim. A maioria das pessoas fica ali ouvindo as músicas - o que é essencial, diga-se de passagem, mas não chega a ler. Outra solução poderia ter enriquecido a experiência da audição.
Como é de costuma nessas exposições, a vida do biografado é aplainada e as contradições são apagadas ou atenuadas. A narração do episódio em que Elis foi pressionada a cantar nas Olimpíadas do Exército em 1972 (governo Médici) omite entre os desdobramentos desse fato o "enterro" dela no cemitério dos mortos-vivos do Cabôco Mamadô, personagem de Henfil no Pasquim [para que se interessar sobre esse assunto, aqui]. Oportunidade perdida de mostrar as tensões e contradições do período e o lugar-chave ocupado por Elis no cenário cultural e político brasileiro, desembocando na tocante reaproximação entre os dois por intermédio da gravação de O Bêbado e a Equilibrista (J.Bosco/A.Blanc), que viria a se tornar o "hino da Anistia". Essa história merecia ser tratada com algum destaque. Inclusive, não sosseguei até achar isso...
Uma coisa não gostei mesmo foi um "dedo" do Nelson Motta (e, suspeito, mãozinha de J.M. Bôscoli), inclusive no próprio texto que lhe foi encomendado, tentando destacar o momento da carreira da Elis em que ele foi o produtor. Fica ridículo e ainda por cima não procede ele afirmar que os discos "Em pleno verão"(1970) e "Ela"(1971) sejam clássicos. São quando muito um certo "acerto de contas" com o Tropicalismo (também não foi à toa que logo na abertura o compositor convocado para falar de Elis tenha sido justamente Caetano), ou mais claramente o acordo de paz entre a MPB e o rock bem tocado, indicando a superação das tensões anteriores em que a própria Elis foi grande protagonista. A exposição apaga esse protagonismo, pois não toca por exemplo no fato dela ter sido uma das líderes da passeata contra a guitarra. Pelo contrário, o texto-narciso de Caetano inclusive cumpre esse papel, atenuando os antagonismos ao enfatizar que, apesar das diferenças, ele reconhecia desde o início o grande talento da cantora. Esse foi um tema que toquei tangencialmente na Tese e tenho vontade de explorar melhor. É curioso que desses discos as canções que mais marcaram e podemos dizer que residem no repertório canônico de Elis sejam Vou Deitar E Rolar (Quaquaraquaquá) (Baden e P.C. Pinheiro) e Madalena (Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza).Outro dado interessante é que na banda que atuou nas gravações de Ela figuravam Nelson Angelo, Novelli e Toninho Horta. Aliás, o vínculo profundo de Elis com Milton e o Clube não fica muito evidente ao longo da exposição, o que fica compensado no final com a belíssima edição do vídeo final em que ela canta Canção do Sal, a primeira canção de Bituca que gravou. É assunto para próximas pesquisas e postagens.
Enfim, é uma exposição bem acabada, inclusive na maior parte é sóbria, o que é um mérito, mas falta conteúdo e reflexão. Não posso deixar de achar que a Elis merece ainda mais. De todo modo, vale demais ir e ficar escutando Elis cantando e dando entrevista - ela sendo entrevistada é quase tão emocionante quanto cantando. Quase.
Enquanto as preparações para a celebração de Natal se encaminham, aproveito alguns intervalos para vagar pelas páginas e histórias extraordinárias de Alucinações musicais, livro do neurologista e escritor Oliver Sacks (autor, entre outros, de Tempo de despertar, certamente bem conhecido pela versão cinematográfica com belas atuações de Robin Williams e principalmente Robert De Niro). É uma leitura literalmente fascinante, tanto pelos relatos impressionantes quanto pela forma elegante de sua escrita. Passo pelos casos de forma aleatória, sem seguir a ordem dos capítulos, já certo de que a seguir virá mais um caso inacreditável, como o do médico que após ser atingido por um raio tornou-se um obsessivo pianista, ou comovente, como a luta de um musicólogo inglês contra a amnésia que lhe permitia lembrar-se apenas por 7 segundos, de modo que cada vez que escuta uma melodia é como se fosse a primeira vez, ou simplesmente divertido como o da química que após a retirada de um tumor teve a personalidade alterada, deixando de ser uma pessoa reservada e contida e transformando-se em festeira e "musicófila". Trata-se portanto de um livro que revela a força da mente humana e a forma profunda com que a música se arraiga nela e integra nossas vidas. Assim, deixo a dica e o link do livro como presente que gostaria de compartilhar nesta data, pequeno tributo à razão e a emoção que nutrem o que há de melhor e pior nessas criaturas demasiadamente complexas que somos. Segue um trecho que tem particular interesse para este blog, pois trata em particular da canção e suas propiedades mnemônicas:
"Toda cultura possui canções e rimas para ajudar as crianças a aprender o alfabeto, os números e outras listas. Mesmo quando adultos, somos limitados em nossa capacidade para memorizar séries ou retê-la na mente se não usarmos recursos ou padrões mnemônicos - e os mais poderosos desses recursos são a rima, a métrica e o canto. Podemos ter de cantar a canção do "ABC" internamente para lembrar o alfabeto, ou, no caso dos americanos, imaginar a canção que Tom Lehrer compôs em 1959 para ajudar a lembrar o nome dos elementos químicos. Para quem tem dotes musicais, uma quantidade imensa de informações pode ser retida dessa maneira, consciente ou inconscientemente. O compositor Ernst Toch (disse-me seu neto Lawrence Weschler) era capaz de reter na mente com grande rapidez uma série muito longa de números depois de ouvi-la uma única vez. Fazia isso convertendo a série de números em música (uma melodia que ele moldava "em correspondência" com os números). Um professor de neurobiologia contou-me a história de uma extraordinária aluna, J., cujas respostas em um exame despertaram suspeitas por parecerem muito familiares. O professor escreveu:
Algumas sentenças depois, pensei: "Não admira que eu goste das respostas dela. Ela está citando minhas aulas palavra por palavra!". Também havia uma questão no exame que ela respondeu com uma citação direta do livro didático. No dia seguinte, chamei J. à minha sala para ter com ela uma conversa sobre cola e plágio, mas alguma coisa estava errada. J. não parecia ser do tipo de aluno que cola. Não parecia ter malícia. Por isso, quando ela entrou na minha sala, o que me veio à cabeça e à boca foi a pergunta: "J., você tem memória fotográfica?". Ela respondeu, empolgada: "Sim, algo parecido com isso. Posso me lembrar de qualquer coisa se a puser em música". Ela então cantou para mim, de memória, partes inteiras das minhas aulas (e cantou bonito, ainda por cima). Fiquei pasmo.
Embora essa estudante tenha, como Toch, um dom extraordinário, todos nós usamos o poder da música dessa maneira, e pôr palavras em música, especialmente nas culturas pré-letradas, tem um papel fundamental nas tradições orais da poesia, do contar histórias, da liturgia e da oração. Livros inteiros podem ser memorizados - a Ilíada e a Odisséia são célebres exemplos disso. Podiam ser recitadas na íntegra porque, como as baladas, tinham ritmo e rima. Quanto essa recitação depende de ritmo musical e quanto puramente de rima lingüística é difícil dizer, mas sem dúvida ambas as coisas estão relacionadas: tanto "rima" como "ritmo" derivam do grego e contêm significados combinados de medida, movimento e sucessão. Uma sucessão articulada, uma melodia ou prosódia, é necessária para conduzir a pessoa, e isso é algo que une a linguagem e a música, e pode ter sido o alicerce de suas origens talvez comuns".
P.S. 2017 Alive Inside
Uma das maiores vantagens do formato "blog" é poder ir aprimorando as postagens, fazendo correções, acréscimos, e agregando material enquanto o texto circula. No canal de You Tube de Cisco Zappa encontrei o seguinte documentário, "(...) realizado por Michael Rossato-Bennett a partir do trabalho do assistente social norte-americano Dan Cohen, que através do poder vivificador da música, reativou circuitos neuronais ligados à memória de velhinhos e velhinhas, atingidos pela demência provocada pelo Alzheimer e outras doenças. O projeto de Dan chama-se "Música e Memória". O documentário além da participação dos personagens centrais, velhinhos e velhinhas, teve também a colaboração do genial e inesquecível Oliver Sacks".
A página Delta Blues [para conhecer, aqui] apresenta um acervo fotográfico sensacional e estava pensando em postar um apanhado por aqui sem maiores explicações, deixando a beleza das imagens sobressair. Mas enquanto pensava no título lembrei-me dessa canção do Gil, gravada no exílio londrino, e me pareceu muito apropriado dela sacar o título e deixá-la "sonorizar" as fotografias. Apreciem sem moderação.
Na ordem, de cima para baixo: Skip James; John Hurt; Fred McDowell; Jesse Fuller; Bessie Smith; Big Joe Williams; Junior Wells e Buddy Guy; Bo Carter; BB King; Big Bill Broonzy
Só porque calhou de assistir um pedaço de um desses vídeos dos Wings, banda montada, liderada e possuída por Paul McCartney em seu período pós-Beatles, resolvi botar aqui um especial de TV (1973) e registros das turnês Wings Over the World / Rockshow (1975-1976).
Os precisos comentários de Renato Ruas em seu blog (link Reflexões: E eles ainda surpreendem) "Nesse sábado tive a sorte de passar pelo Multishow e ver que eles estavam transmitindo ao vivo um dos shows da comemoração dos 50 anos dos Rolling Stones (...)" me motivaram a reproduzir o comentário que escrevi outro dia quando soube que os Stones iam abrir os shows [aqui] com I wanna be your man[aqui uma análiseda Notes on seriespor Alan Pollack]. "Para
saber a diferença que separa os Beatles dos Stones há muitos meios, mas
agora vi um melhor do que todos. E é bom ver que os próprios Stones tem
noção disso, abrindo seu show de 50 anos reverenciando os Beatles com a
canção que Lennon e McCartney lhes deram de cortesia." Acabei esticando um pouco a postagem porque esse é um tópico que, se de alguma forma bastante desgastado, ao mesmo tempo é a base de um "pequeno mito de origem" da história do rock, pois reza a lenda que a dupla Jagger e Richards nasceu após ambos terem visto a dupla John e Paul concluir a canção em instantes. Encontrei alguns depoimentos dos dois últimos [aqui] que lançam um pouco de luz nessa história, ainda que simultaneamente revelem como as memórias são parciais:
It was a throwaway. The only two versions of the song
were Ringo and the Rolling Stones. That shows how much importance we put
on it: We weren't going to give them anything great, right?(...) I Wanna Be Your Man was a kind of lick Paul had: 'I
want to be your lover, baby. I want to be your man.' I think we finished
it off for the Stones... yeah, we were taken down to meet the Stones at
the club where they were playing in Richmond by Brian
and some other guy. They wanted a song and we went to see them to see
what kind of stuff they did. Mick and Keith had heard that we had an
unfinished song - Paul just had this bit and we needed another verse or
something. We sort of played it roughly to them and they said, 'Yeah,
OK, that's our style.' So Paul and I just went off in the corner of the
room and finished the song off while they were all still there talking.
We came back and that's how Mick and Keith got inspired to write,
because, 'Jesus, look at that. They just went in the corner and wrote it
and came back!' Right in front of their eyes we did it. [grifos meus]
John Lennon
All We Are Saying, David Sheff, 1980
So they shouted from the taxi and we yelled, 'Hey, hey,
give us a lift, give us a lift,' and we bummed a lift off them. So
there were the four of us sitting in a taxi and I think Mick said, 'Hey,
we're recording. Got any songs?' And we said, 'Aaaah, yes, sure, we got
one. How about Ringo's song? You could do it as a single.' (...) We often used to say to people, the words don't really
matter, people don't listen to words, it's the sound they listen to. So I
Wanna Be Your Man was to try and give Ringo something like Boys; an uptempo song he could sing from the drums. So again it had to be very simple.[grifos meus]
Paul McCartney
Many Years From Now, Barry Miles, 1997
Assim, em que pesem as dúvidas, lacunas, e as eventuais parcialidades ou mesmo invenções que as entrevistas comportam, fato é que a dupla de compositores de Liverpool não considerava muito relevante a canção, de modo que a cederam aos Stones. Para eles I wanna be your man adquiriu outro significado, um peso que agora eles demonstram ao relembrá-la como o ponto a partir do qual as pedras começaram a rolar(foi inclusive sua primeira gravação a figurar nos Top20 britânicos).Segue também um vídeo com uma performance dos Rolling Stones para a mesma canção no início de carreira. O curioso desse vídeo é a reprodução em linhas gerais daquele chavão que era opor a imagem dos Beatles bons moços e Stones ameaças aos bons costumes. Divertidíssimo...
Lendo Canção: A volta da Asa branca: Leonardo Davinoem mais uma postagem de prima. Gilberto Gil canta Luiz Gonzaga, cantos fundantes do Brasil e de sua canção popular [acesse o link para a versão completa]
Um trecho pra ir dando vontade de ler tudo... "É do luxo exuberante e óbvio do vivente-cantador da "festafeira no pino do sol a pino", cantador das tragédias do cotidiano, cordelistas da vida comum e fantástica, que a voz de Gonzaga se alimenta. A gestualidade vocal de Luiz Gonzaga figuratizava o "sertão é em todo lugar; o sertão é dentro de mim" rosiano. Posto que a voz de Gonzaga, seu modo de cantar e dizer, é a grande vereda dos sertões geográficos e íntimos. O que é "A volta da asa branca" senão uma fresta de luz no corpo ressequido do sertanejo? Um bálsamo sonoro na intemperância dos dias de muito sol e quase nenhuma água. (...) Gilberto Gil (Gilberto Gil canta Luiz Gonzaga, 2012) capta esta alegria do povo e da natureza natural inventada por Luiz Gonzaga ao cantar "A volta da asa branca" com acompanhamento festivo. Ele investe no sujeito que se enche de novas vontades: "(...) E se a safra / Não atrapaiá meus pranos / Que que há, o seu vigário / Vou casar no fim do ano". Em entrevista à revista Bravo! (dez/2012), Gilberto Gil declarou: "Eu não existiria sem Gonzagão". Eu completaria que nem o sertão, nem o Nordeste, como os entendemos hoje, existiriam sem a voz de Gonzaga, sua agonia transvalorada em som. É ele o sabiá a sustentar memórias, crônicas e declarações de amor aqui na voz."
A grande admiração por Titane, cujo trabalho fui conhecer por indicação de meu caro amigo Renato Ruas, so fez aumentar ao longo dos anos. Sua presença e sua força, no disco, no palco, no cenário cultural, onde estiver, são do tamanho desse mundo permeado dos traços de tradições atualizadas que seu canto abarca. Música para todos os ouvidos.
Blog de fotografias do espetáculo musical Titane e o Campo das Vertentes, que esteve em cartaz em São João del Rei, no dia 25.10.07, e em Divinópolis, nos dias 3 e 4.11.07. http://titaneeocampodasvertentes.blogspot.com.br/
Há 15 anos atrás publiquei na edição de estréia do saudoso Jornal do Cahis (Centro Acadêmico dos estudantes de História da UFMG) um pequeno artigo intitulado Memórias no chão: acerca de "Ruas da cidade". Para marcar o aniversário de Belo Horizonte, lembrei dessa grande canção de Lô e Marcio Borges que me inspirou, ainda na graduação, a pesquisar a cidade e o Clube da Esquina. Entre seus méritos e falhas, vejo um "retrato do historiador quando jovem" e me divirto com o que a passagem do tempo fez mudar ou tornou de certa forma irônico, como a citação de Abílio Barreto, defendendo um panteão nas ruas para perpetuar os cidadãos dignos da lembrança do povo. Jamais passaria pela minha cabeça que iria trabalhar no museu criado pelo sujeito e posteriormente renomeado em sua memória. Nomes de quem morreu... Encontro também a marca de Benjamin, tomado no que seu pensamento tem de mais radical, ali no momento do impacto da leitura das Teses sobre a História. Inevitável pensar na aplicação dessa perspectiva aos conflitos atuais envolvendo o território dos Guarani Kaiowá.
“As ruas com nomes de índios são como cemitérios aonde se enterram os anônimos derrotados: Todos no chão são pisados diariamente, e inadvertidamente, pela gente que passa. À separação imposta pelo saber delimitador, Lô e Márcio contrapõem um princípio unificador - o princípio dos derrotados - que devem ser relembrados pela devastação que a civilização lhes trouxe, que não pode ser redimida na assimilação fácil do nome(...)” (Jornal do Cahis, ano 1, n° zero, p.6)
Também por coisas que ficaram (ou eventualmente ficarão) por dizer, deu vontade de fazer uma espécie de profissão de fé. No trabalho sério, na dedicação, na crítica bem construída, no compromisso do pesquisador com seu ofício, nas outras formas de ser e estar na cidade, nos significados criados através da música, nos amigos.
Ruas da cidade Guiacurus Caetés Goitacazes Tupinambás Aimorés Todos no chão Guajajaras Tamoios Tapuias Todos Timbiras Tupis Todos no chão A parede das ruas Não devolveu Os abismos que se rolou Horizonte perdido no meio da selva Cresceu o arraial, o arraial Passa bonde passa boiada Passa trator, avião Ruas e reis Guajajaras Tamoios Tapuias Tupinambás Aimorés Todos no chão A cidade plantou no coração Tantos nomes de quem morreu Horizonte perdido no meio da selva Cresceu o arraial, ao arraial
Umas poucas vezes na História da Música Popular Brasileira ocorrem parcerias "siamesas", dessas que constituem uma obra toda, de modo que não conseguimos separar no imaginário os membros que acabam configurando um verdadeiro "ente". É nesse nível de compatibilidade de gênios que enquadro a dupla formada por João Bosco e Aldir Blanc, autores de canções memoráveis e figuras protagonistas do cenário cultural e político brasileiro, especialmente durante a década de 1970. Ao ver hoje algumas postagens no admirável Arquivos Vinis(quem quiser conhecer, recomendo essa página fantástica no Facebook) não resisti a furtar desse dia dedicado às correções de trabalhos alguns minutos para gravar aqui minha admiração pelos dois, aos quais gostaria de ter devotado mais atenção na minha tese, mas fica aí a sugestão para os navegantes que venham a singrar as "águas da Guanabara" da pesquisa sobre a MPB, eles merecem muito estudos de maior profundidade.
LP "Linha de Passe". João Bosco. RCA Victor. 1979. Arte de Mello Menezes.
Linha de Passe(João Bosco/ Paulo Emílio/ Aldir Blanc), com João Bosco e Yamandu Costa
Chegamos à 5a. parte da lista das 30 selecionadas e analisadas por Pablo Castro, numa iniciativa que concretizou uma ideia antiga sobre a qual já havíamos conversado há um bom tempo. Foi em boa hora! A repercussão tem sido fantástica, tanto no facebook quanto aqui no blog. As visitas, os comentários e a participação de tantos amigos são fundamentais, e nos motivam muito a continuar e pensar em novos desdobramentos dessa história. Gostaria de agradecer a todos, e um agradecimento extra aos que estão acompanhando o blog, que brevemente irá passar por mudanças que espero irão torná-lo um espaço ainda mais interessante. Inclusive estão convidados a sugerir temas para as próximas porque com certeza outras listas como essa virão. Valeu! Luiz H. Garcia
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Terminei minha Lista das 30 mais do Clube [completa, aqui] com a
nítida sensação de que se eu fizesse outra, com outras 30, ela não
ficaria atrás em termos de qualidade. Tal o vulto de qualidade e
quantidade que a produção cancional do Clube deixará para as próximas
gerações, enriquecendo o já absurdo panteão da Música Brasileira. Ao
começar a lista, despretensiosamente numa dessas madrugadas, não
imaginava que ela daria tanta repercussão positiva.
Me descabelei aqui para tentar não deixar de fora músicas como Fé
Cega, Faca Amolada, Uma Canção, Luz e Mistério, Ponta de Areia, Léo,
Paula e Bebeto, Fairy Tale Friend, Cravo e Canela, Nascente, E Daí,
Bodas, Sentinela, Dona Olympia, Outubro, Três Pontas, Choveu, O Medo de
amar é o Medo de ser Livre, Viagem das Mãos e tantas outras que
mereceriam estar na lista das melhores de qualquer compositor. Tentei
equilibrar , dentro de tão apertado limite, os compositores, tanto
músicos quanto letristas, as fases, os discos importantes, as temáticas e
os estilos, e ainda jogar nova luz a canções pouco lembradas, como Tema
dos Deuses, Rio Doce, Tiro Cruzado , Caso Você Queira Saber, e outras. Devo agradecer, de imediato, meu parceiro Luiz Henrique Assis Garcia , que se empolgou com a idéia e replicou minhas modestas resenhas em seu excelente blog Massa Crítica Música Popular. Além dele, a excepcional força que o grande intelectual Idelber Avelar Guarani Kaiowá me deu, chamando a atenção de vários de seus amigos no fb, gente da mais alta qualidade. Além de meus amigos músicos , como Makely Kaiowá , Humberto Junqueira, Alieksey Vianna, Avelar Junior, Kristoff Silva, Flávio Henrique, Péricles Garcia, o grande Daniel Dan Fernandes
que também montou uma playlist com as músicas, e inúmeros amigos e
entusiastas da obra do Clube, inclusive alguns participantes, como o
Márcio Borges, o Murilo Antunes, Telo e Solange Borges, que comentaram
aqui, aprovando minha iniciativa. Fico realmente muito feliz em poder
contribuir para a apreciação dessa obra monumental na Música Brasileira.
Beijos a todos !
Pablo Castro
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A vigésima- quinta da nossa lista é Feira
Moderna, de Beto Guedes, Lô Borges e Fernando Brant. Feira Moderna é um
marco em vários sentidos. No contexto do Clube, foi a primeiro flerte
mais sério com o roque, com seu riff de baixo e intermezzo
cromático tocados com aquela afirmação extravasada do gênero britânico.
Defendida primeiramente pela banda Som Imaginário em um festival [essa versão, aqui], com a
voz estridente e nervosa do saudoso Zé Rodrix e as metáforas típicas do
Clube, aqui saltando à vista o temerário sorriso, a velha chaga, o
medo, e a Feira Moderna aqui não pode ser outra coisa que não a TV.
Independência ou morte é uma alusão clara da aliança da televisão (particularmente a Globo) com o regime militar, a paz na terra amém
poderia ter sido grafada como a pax ... interessante notar como na
primeira versão "o meu coração é velho" e na segunda , gravada pelo
compositor Beto Guedes seis anos mais tarde, passou a ter o verso mais
positivo: "meu coração é novo" [essa versão, aqui]. Dentro dessa intereseção roqueira do
Clube com o Rock, poderíamos ter incluído a ainda mais tipicamente
roqueira Você Fica Melhor Assim ( Lô e Tavinho Moura), ou coisas como
Fairy Tale Friend (Cadê) (Milton e Ronaldo), Idolatrada (Milton e
Brant), Lumiar (Beto e Ronaldo), mas acho que Feira Moderna é mais
exemplar desse movimento : uma estrofe (única ) de 7 (!?) compassos ( em
versos de 3+3 +1 ), e um longo refrão de duas metades de 11 (!!??)
compassos remetem às idiossincrasias dos Beatles, repletos desses
tamanhos irregulares de partes da forma, e os ganchos instrumentais são
inspirados indubitavelmente nesse ethos da banda de rock . Daí ter sido a
música de trabalho do Som Imaginário, em sua primeira e mais célebre
formação, faz todo o sentido. Harmonicamente, a música gira em torno de
Lá maior, repousando em seu relativo Fá sustenido menor durante o longo
estribilho, e voltando ao tom por intermédio da subdominante , na famosa
cadência plagal, típica do roque. É um marco na relação da música
brasileira com a inundação invasiva anglo-saxônica, sem os hilários
arremedos histriônicos dos Mutantes nem com a piegas reverência
envergonhada da Jovem Guarda.
Feira Moderna Tua cor é o que eles olham , velha chaga Teu sorriso é o que eles temem, medo, medo Feira Moderna, um convite sensual oh telefonista , se a distância já morreu meu coração é velho meu coração é morto e eu nem li o jornal Nesta caverna o convite é sempre igual oh telefonista, se a distância já morreu independência ou morte descansa em berço forte a paz na terra, amém.
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Vento de Maio, de Telo e Márcio Borges, logrou
ser a vigésima-sexta da Lista que tá cada vez mais difícil de fechar
... essa balada esquineira em 6/8 provou mais uma vez a rara estirpe da
família Borges, em que o então menino Telo Borges fez
uma trilha pra teatro e seu irmão mais velho Marcinho musicou um trecho
que acabou sendo esse standard do Clube da Esquina. Uma primeira frase
postula o início confiante em Sol maior : "Vento de raio, rainha de maio,
estrela cadente ..." então chega de repente o "fim da viagem", e ficamos
vagueando de forma ambígua nos campos das tonalidades, ainda perto de
Sol, mas com acordes distantes como Ebm7, quando já não dava mais pra
voltar atrás. E depois o épico B da música, em Sol menor, desnuda o
subtexto de uma das raras músicas de amor romântico do Clube da Esquina,
com simbolismos oníricos e referências veladas, e algumas imagens
bastante inspiradas. A melodia repousa em sétimas maiores e nonas, os
intervalos mais surrealistas, em frases de arpeggio, e poucos graus
conjuntos, e Elis a interpretou magistralmente [para ouvir, aqui], de forma insuperável,
mas o tipo de arranjo que mais encarna o espírito do clube é mesmo a
versão de Lô Borges*. Um estupendo trabalho em família! *Também canta Solange Borges [nota do editor]
Vento de Maio Vento de Maio rainha de raio estrela cadente Chegou de repente o fim da viagem Agora já não dá mais pra voltar atrás Rainha de maio valeu o teu pique Apenas para chover no meu piquenique Assim meu sapato coberto de barro Apenas pra não parar nem voltar atrás Chegou de repente o fim da viagem Agora já não dá mais... Vento de raio rainha de Maio estrela cadente Chegou de repente o fim da viagem Agora já não dá mais pra voltar atrás Rainha de maio valeu o teu pique Apenas para chover no meu piquenique Assim meu sapato coberto de barro Apenas pra não parar nem voltar atrás Rainha de maio valeu o teu pique Apenas para chover... Nisso eu escuto no rádio do carro a nossa canção Sol girassol e meus olhos abertos pra outra emoção E quase que eu me esqueci que o tempo não pára Nem vai esperar Vento de Maio rainha dos raios de sol Vá no teu pique estrela cadente até nunca mais Não te maltrates nem tentes voltar o que não tem mais vez Nem lembro teu nome nem sei Estrela qualquer lá no fundo do mar Vento de Maio rainha dos raios de sol Chegou de repente o fim da viagem Agora já não dá mais pra voltar atrás Rainha de maio valeu o teu pique Apenas para chover no meu piquenique Assim meu sapato coberto de barro Apenas pra não parar nem voltar atrás Rainha de Maio valeu o teu pique Apenas para chover no meu piquenique...
--##-- A vigésima -sétima calhou de ser Canção do
Novo Mundo (não confundir com Canção da América), de Beto Guedes e
Ronaldo Bastos. Agoniei-me aqui com qual balada de primeiro nível que eu
incluiria dos dois: Amor de Índio, Lumiar, Sol de Primavera,
O Sal da Terra foram as que mais me botaram em dúvida . Decidi por
Canção do Novo Mundo porque é uma resposta ao terrível desaparecimento
forçado de John Lennon, e é quase como se a Canção recuperasse o
sentido num evento tão torpe. Numa época de abertura política, as letras
do Clube tendiam a metáforas mais positivas, ao contrário dos
simbolismos mais negros dos anos setenta, mas Canção do Novo Mundo bota o
dedo na ferida , sem datar ou reduzir a letra ao acontecimento
revoltante que a inspirou. Também pelo fato de a composição fazer uso de
elementos rítmicos bastante notáveis, particularmente o uso de
compassos diferentes intercalados para dar naturalidade à divisão
melódica. Temos 2 compassos de 5/4 e um de 6/4 entrecortados pelo 4/4
preponderante na música. Esse recurso super heterodoxo foi usado também
na magnífica Ponta de Areia, de Milton e Brant, com resultado idêntico:
a melodia tem preponderância sobre a regularidade rítmica da canção, o
que confere ainda mais distintividade à composição. A forma é clássica,
com 4 estrofes (uma instrumental) estrofes e três Bs (um
instrumental), que modula de Dó maior para seu relativo paralelo Mi
bemol, um arranjo à la George Martin e um solo de Toninho à la George
Harrison, e a tessitura alta de melodia consistente: o mesmo perfil no
tom sobe uma quarta para o grande finale. Beto toca bateria na versão
original do disco Contos da Lua Vaga (1981), que, infelizmente, não
consegui achar em versão completa no youtube. Felizmente Milton
Nascimento gravou essa música em um disco ao vivo, com orquestra, em 1983 [para ver e ouvir, aqui].
Beto e Ronaldo conseguiram aqui esse equilíbrio entre elementos
distintivos e clássicos que faz dessa canção o protótipo perfeito de uma
canção de Lennon & McCartney que nenhum deles deixaria de assinar
se a tivessem feito.
Quem sonhou Só vale se já sonhou demais Vertente de muitas gerações Gravado em nosso corações Um nome se escreve fundo As canções em nossa memória Vão ficar Profundas raízes vão crescer A luz das pessoas Me faz crer E eu sinto que vamos juntos Oh! Nem o tempo amigo Nem a força bruta Pode um sonho apagar Quem perdeu o trem da história por querer Saiu do juízo sem saber Foi mais um covarde a se esconder Diante de um novo mundo Quem souber dizer a exata explicação Me diz como pode acontecer Um simples canalha mata um rei Em menos de um segundo Oh! Minha estrela amiga Porque você não fez a bala parar Oh! Nem o tempo amigo Nem a força bruta Pode um sonho apagar Quem perdeu o trem da história por querer Saiu do juízo sem saber Foi mais um covarde a se esconder Diante de um novo mundo
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A vigésima-oitava da minha lista do Clube da
Esquina é Canção Postal, de Lô Borges e Ronaldo Bastos, do famoso "Disco
do Tênis" (Lô Borges, 1972). Música de distinta melancolia, me parece que poderia
ser a parte 2 de Um Girassol da Cor do seu Cabelo, uma canção de despedida. No auge do terror no Brasil, essa partida
forçada que é o sub-texto da canção é tocante no que diz respeito a uma
juventude que tinha a vida pela frente e se sacrifica em nome de um
sonho de um mundo, de um país, de uma cidade melhor. A sequência
harmônica crucial do A da música é um exemplo didático de como
transformar os acordes, passo a passo, alterando uma ou duas notas de
cada vez, o que propicia um efeito de lenta travessia em direção a um
destino sombrio... O Sol maior, tom da música, vai se transformando em
Sol diminuto, Fá Sustenido com Sétima, Fá sustenido meio diminuto pra
resolver no seu irmão mais triste, o relativo Mi menor. Essa seta
apontando a melancolia é a chave pra músicas como: Um Girassol, Faça
Seu Jogo, Trem de Doido, Homem da Rua, Não Se Apague Esta Noite, Como o
Machado, Eu Sou Como Você É, a produção já de alto nível de elaboração
do Lô com 20 anos de idade. Mas Canção Postal me parece ser mais
exemplar porque condensa elementos de todas as citadas acima, a indireta
referência a um destino trágico de um jovem que ainda "sabe dançar". O
cruzamento de identidades se sobrepõe ao que seria um mero amor
romântico saudoso, "eu quero ver você, ter você, ser você, amar você". O ingênuo da melodia de curtíssima tessitura (de fá sustenido a dó ,
no campo de sol) e o profundo da composição se expressam no arranjo:
os violões de Lô, Novelli e Nelson Ângelo e o bandolim de Beto Guedes se
tornam baixo, condução harmônica e arpeggio agudo de incisiva dor. O
"até manhã, até manhã, até manhã" soa no contexto um consolo ilusório,
uma esperança perdida de que o outro dia nos trará de volta o que já,
irremediavelmente, perdemos.
Canção Postal Quando alguém passar e perguntar por mim Não esqueça de dizer , até manhã, até manhã, até manhã Não esqueça de sorrir como eu tentei sorrir Quando alguém lembrar o que fui, o que sou, o que sei Diz pros amigos que eu ainda sei dançar, deixa o mundo virar para sempre No fundo do pomar, estrelas do lençol Eu quero ver você, ser você, amar você Quando você ouvir essa canção que eu fiz Não esqueça de sonhar até manhã, até manhã, até manhã.
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A penúltima da minha lista das 30 mais do
Clube da Esquina é Tudo que Você Podia Ser, de Lô e Márcio Borges, que
abria o disco Clube da Esquina, em 72. O violão rasqueado de Lô, com a
sexta afinada no tom ré, intercala acordes menores com sétimas
e nonas e décimas-primeiras, dentro do campo de ré menor mas com essas
dissonâncias abrindo os espectros dos modos para várias direções. Ao
mesmo tempo, a levada é enérgica, apontando para uma espécie de
samba-roque, com uma condução rítmica sincopada mas com os tempos fortes
enfáticos; tirante esse detalhe, nada mais distante entre Lô Borges e
Jorge Ben. As camadas de instrumentação vão se sobrepondo passo a passo,
o violão de Lô, a voz de Milton, a guitarra de Toninho, o órgão de
Wagner, a guitarra 12 de Tavito, a percussão de Nelson Ângelo e
Robertinho, e, por fim, o baixo de Beto Guedes e a bateria de Rubinho. A
forma é interessante: intro/ primeira estrofe- em duas partes / intro
/ segunda estrofe- em duas partes / ponte / segunda parte da estrofe/
estribilho instrumental / terceira estrofe / ponte / segunda parte da
estrofe / estribilho instrumental - fim. A letra emana aquele ponto da
vida em que parece que se está no meio; enquanto ainda se pode esperar
muita aventura no futuro, o destino da pessoa já não é mais uma página
em branco, várias chances foram perdidas , e daqui pra frente é pra
valer. Essa urgência dá o mote da música, e quando a melodia resolve (tudo que você podia ser..) repousa sempre (exceto na primeira estrofe)
num acorde surpreendente. Quer dizer, por mais que planejemos, o futuro
sempre escapa das nossas mãos ... impossível melhor abertura para um
disco ambicioso como o Clube da Esquina, do que uma canção que bota em
dúvida a direção em que estamos indo. Interessante ela ser também, toda,
na segunda pessoa, e não se tratar, mas uma vez, de uma canção de amor.
Tudo que você CONSEGUE ser ... OU NADA !!!
Tudo que você podia ser Com sol e chuva você sonhava Que ia ser melhor depois Você queria ser o grande herói das estradas Tudo que você queria ser Sei um segredo você tem medo Só pensa agora em voltar Não fala mais na bota e do anel de Zapata Tudo que você devia ser sem medo E não se lembra mais de mim Você não quis deixar que eu falasse de tudo Tudo que você podia ser na estrada Ah! Sol e chuva na sua estrada Mas não importa não faz mal Você ainda pensa e é melhor do que nada Tudo que você consegue ser ou nada
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Impossível
não terminar a saga da minha lista das mais geniais do Clube da Esquina
sem a canção que deu origem à série: Clube da Esquina, de Milton
Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges.
Uma loa lunar ao homens da esquina, que dividem até a solidão. A noite
propicia o silêncio, as portas vão se fechar na fecundação que o novo
dia enxergará. Esse prenúncio do novo e essa criação noturna deslocada
dos arroubos diários, esse tempo que passa invisível, e que se revela no
futuro, consistem na melhor definição do Clube, no anúncio de um fruto
coletivo que é gerado no escuro, sob a a pálida luz da lua.
Intuitivamente, Márcio Borges definia todo aquele espectro que
resultaria nessa obra musical , não só a canção, mas todo o 'movimento'
Clube da Esquina, todas aquelas canções. Um grande país de canções!
Milton foi subindo as notas melódicas do seu violão enquanto Lô foi
descendo os acordes, girando em torno de Lá maior mas sem nunca chegar
em casa, notom de Lá. O breve B em Ré mixolídio nos dá um outro ponto de vista, remetendo-nos novamente ao ponto de partida, no Curral D'El Rey, depois das portas fechadas, que se abram as janelas para o indizível e vago mundo lunar, depois do que ficamos pendurados no fio do Mi suspenso, fugindo, fugindo pra outro lugar.
Clube da Esquina Noite chegou outra vez, de novo na esquina Os homens estão, Todos se acham imortais Dividem a noite, e lua e até solidão Neste clube, a gente sozinha se vê pela última vez À espera do dia, naquela calçada Fugindo de outro lugar Perto da noite estou O rumo encontro nas pedras Encontro de vez um grande país Eu espero, espero do fundo da noite chegar Mas agora eu quero tomar suas mãos Vou buscá-la aonde for Venha até a esquina Você não conhece o futuro que tenho nas mãos Agora as portas vão todas se fechar No claro do dia, o novo encontrarei E no Curral D'El Rey Janelas se abram ao negro do mundo lunar Mas eu não me acho perdido No fundo da noite partiu minha voz Já é hora do corpo vencer a manhã Outro dia já vem e a vida se cansa na esquina Fugindo, fugindo pra outro lugar A versão do disco Milton (1970)
E, para fechar, essa bela interpretação do Bituca no documentário "A sede do peixe" em 1997.